Ao comentar sobre seu meticuloso hábito de contar cada uma de suas relações anais (colecionando numa caixa as camisinhas usadas em cada episódio) Toni Bentley, autora do recém-lançado A Entrega: memórias eróticas (Objetiva, 2005, 220 págs.), justifica-se como sendo “anal”. Terminada a leitura, entretanto, percebi que a autora está muito além de ser uma simples freudiana, e que, de fato, parece ter desenvolvido uma verdadeira “alma anal”, termo que pode ser explicado pela intensa relação espiritual/existencial que Bentley estabelece em seu “sórdidos” relatos.
O livro, que já se encontra em décimo lugar entre os mais vendidos de não-ficção no Brasil, envolve um relato pessoal das experiências eróticas da autora, desde uma breve introdução acerca de seu defloramento, suas primeiras relações sexuais insatisfatórias, seu casamento fracassado (e traumático) e diversos relacionamentos monogâmicos infrutíferos, até sua grande descoberta sexual com o Homem A, com quem vive uma relação por cerca de três anos. E a tal grande descoberta da narradora nada mais é que o intenso prazer que encontra nas relações anais mantidas com seu amante. Mas fica claro, pela intensidade e pela complexidade que se é dada por Bentley à sua relação com o Homem A, que não se trata apenas da descoberta de um grande prazer, mas um desabrochar espiritual. A ex-bailarina, ex-esposa e ex-boa-moça tem uma formação ateísta que a leva a procurar de diversas maneiras por alguma crença divina.
Além disso, carrega traumas de uma criação paterna rígida e carente de amor, o que, segunda a própria narradora, pode ter sido grande o fator que a levou a desenvolver seu caráter tão oblíquo e tão frágil, e a ser uma pessoa com tantas dificuldades de relacionamentos. E essa mulher de vida sexual tão atribulada acaba encontrando a terapia e a “cura” de seus fantasmas na sua “porta de saída”: numa relação (jamais monogâmica) de prazer transcendente, masoquismo e obediência temperada, Bentley viaja para dentro e fora de si, harmoniza seus yin-yang , tem seu encontro consigo própria e com Deus; a sua luz interior, a revelação de sua espiritualidade, é acesa pelo seu buraco obscuro!
E podemos pensar, sim, que essa paixão não é novidade tão grande, pois o ânus é mote pra lá de cantado e recantado na literatura erótica e/ou pornográfica: o renascentista Pietro Aretino já cantava repetidamente em seus sonetos o seu grande apreço pelo sexo anal (“E Deus perdoe a quem no cu não foda”), e também Sade, na voz do cínico Dolmacé, disserta longa e apaixonadamente sobre sua devoção pelo ânus. Mas fique claro que Aretino e Sade, além de lidarem com uma tradição pornográfica de estereótipos, passam ao leitor uma visão masculina do assunto. De poucas vozes femininas que já vi falando sobre a “paixão obscura” (e como uma revelação de prazer), lembro talvez apenas de Adélia Prado, em seu poema “Objeto de Amor”:
“De tal ordem é e tão precioso/ que vou dizer-lhes
que não posso guardá-lo/ sem a sensação de um roubo:
cu é lindo!/ Fazei o que puderes com esta dádiva.
quanto a mim dou graças/ pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.”
Registre-se, então, que recentes estudos de sexologia já se aprofundam bastante nos assuntos das relações anais (e não mais como perversões, desvios ou tabus), esquadrinhando-se e diferenciando-se, inclusive, os orgasmos anais feminino e masculino. Mas a experiência de vida de Bentley parece adiantar esses estudos em anos (ou ânus...).
Outra característica de não-novidade em A entrega é a da autobiografia erótica/pornográfica, já desenvolvida por Casanova em suas memórias, pelo relato anônimo (e duvidoso) do vitoriano Walter em Minha Vida Secreta , por nomes consagrados da literatura norte-americana como Frank Harris, Henry Miller, Erica Jong e Anais Nin, por escritoras brasileiras de 70/80, como Adelaide Carraro, Cassandra Rios e Márcia Denser, e, recentemente (num claro indício da total libertação sexual e pessoal feminina), por nomes como Melissa Panarello, Ana Ferreira e Sabina Anzuategui. Mas Toni Bentley, em sua incursão, mais uma vez parece ir além de todos esses nomes, seja pela ousadia, seja pela intensidade com que relata sua descoberta e sua paixão.
E em meio a tantas descrições de coitos anais (ela conta um total de 291 do início até um fim de seu caso com o Homem A) e reflexões e apologias ao buraquinho, o livro apresenta ainda um caráter de manual informativo. Bentley, com base em vasta experiência de campo, disserta sobre diversos “tipos” sexuais peculiares (como o Farejador de Vagina, apaixonado pela prática do cunilíngua), sobre práticas e preferências sexuais mais “comuns” como o menáge à trois , o swing , o 69, divagações sobre tamanhos de pênis, etc. Também apresenta dados e estatísticas acerca da sodomia: eu mesmo não fazia idéia, por exemplo, de que até 1962 todos os estados norte-americanos tinham leis severas contra a prática sodomita, e que em treze deles ainda vigoram leis desse caráter, tendo havido, só na Carolina do Sul, entre 1945 e 1974, 146 processos e 125 condenações! A autora ainda fala sobre tipos de lingerie e sobre o KY Gel, deixando inclusive dicas de uso e compra: “Conselho para quem dá o cu: use óculos escuros para comprar KY e não se vire na fila do caixa: estão todos olhando para sua bunda, sem acreditar” (pág. 111).
A Entrega , enfim, como todo grande auto-relato erótico, envolve a história de uma paixão, um grande caso, com seu desenrolar, sua decadência e seu fim (mas que deixando uma clara mensagem de renovação do espírito humano e continuidade da vida). Pode ser visto, afinal, como uma bela e intensa história de amor, escrita com estilo e alma. Um livro para ser lido sem preconceitos e/ou julgamentos morais, mas com a mente e o espírito “escancarados”.
Leônidas Pellegrini, sobre” A Entrega” de Toni Bentley, no Digestivo Cultural.
Nenhum comentário:
Postar um comentário