terça-feira, novembro 22, 2005

sim, tinhamos culhões

1. Diretor de arte de primeiro nível, era também um excelente pintor. E valia a pena conversar com ele: tinha sempre uma pitada de bom humor para alegrar o papo. Só não gostava de conversar sobre problemas que convulsionavam a vida nacional. Nessa hora, caía fora.

Os tempos eram difíceis. Alguns temas tinham de ser conversados em voz baixa, somente na presença de pessoas de confiança. Estávamos em plena ditadura. “Tenho mulher e filhos, não posso me arriscar”, justificava. E fugia, quando a conversa descambava para a política.

Um dia transitava pela rua Manoel da Nóbrega, filha ainda pequena no banco de trás. Preocupado com ela não percebeu que passava em frente do quartel ali instalado na época. E não diminuiu a velocidade, que já era pequena. De repente, os vidros do carro foram estilhaçados. Eram tiros, disparados por um soldado qualquer.

A partir do dia seguinte, na agência, depois de contar o caso, entrou nas rodas onde o regime ditatorial era discutido.

2. Talvez você não saiba, mas a primeira manifestação pública pedindo o retorno à democracia foi feita, através de anúncio, por publicitários. A segunda também foi por publicitários, e saiu de memorável declaração feita pelos participantes do III Congresso Brasileiro de Propaganda. Vladmir Herzog era também era publicitário, chegou o departamento de RTV da Thompson.

Geração de autênticos cidadãos, era aquela. Destemida, não se furtava em se manifestar sobre assuntos importantes relacionados com os destinos do país ou com a própria profissão. Saiu do III Congresso certa de que o IV, marcado para a Bahia, teria como tema central a regulamentação profissional. Infelizmente a ABAP – sempre ela! – abortou a iniciativa. Só que naquela época estavam reunidos em torno dessa entidade líderes de fato, reconhecidos pelo setor. Criticados, muitas vezes, sim, mas respeitados.

3. E hoje? Hoje estamos assistindo um fenômeno oposto. Publicitário envolvido com questões nacionais só aparece quando ocorre um escândalo. Que triste!

Mas há exceções. Uma delas se chama Consuelo de Castro, que a imprensa chama de dramaturga. (Chamaria de publicitária se ela estivesse envolvida em algum escândalo cabeludo).

Consuelo e eu trabalhos juntos, na Thompson. Depois nos reencontramos na Almap. Juntos, fizemos – modéstia à parte – bons trabalhos criativos.

Consuelo foi perseguida pelo regime militar, chegou a ser presa, mas jamais perdeu o entusiasmo. Nem fugiu à sua condição de cidadã. Continua assim até hoje.

Semana passada, por exemplo, liderou manifestação de solidariedade a José Dirceu. Não importa se está certa ou errada, nem aqui é foro adequado para se discutir isso. Importa que ela não se omite.

Mas muitos de nós fazemos exatamente o contrário.

4. Vamos nos esquecer das questões políticas. Vamos nos centrar na nossa profissão.

Estão aí na ordem do dia dois assuntos da maior importância: regulamentação profissional e IV Congresso. O primeiro, porque diz respeito diretamente ao nosso destino. O segundo, porque estámos vivendo um momento em que a comunicação de marketing sofre pressão de todos lados. Perde prestígio todo dia. Ela e todos os que nela trabalho.

E o setor está quieto.

5. Ou melhor: os profissionais, estão quietos. Manifesta-se a ABAP, contrária a que se discuta o assunto, pra variar. Manifesta-se a Fenapro, contra também, porque tudo o que a ABAP manda, ela faz. E nós, os profissionais? Cadê os sindicatos que nos representam? (Aliás, você por acaso é capaz de me dizer o nome do presidente dessa entidade, o que ele faz, onde ela se realiza? Um doce, se me disser).

E não são só os profissionais. Os estudantes de comunicação também. Agem como se isso não tivesse nada com eles.

Como diz a sabedoria popular, as coisas não caem do céu. É preciso conquistá-las. E pelo que percebo, ninguém está a fim disso.

Um dia vão perceber que, a exemplo do que ocorreu com aquele diretor de arte, estão tomando tiros pelas costas. Aí, os vidros do carro que carrega sua indiferença estarão totalmente estilhaçados. E talvez seja tarde demais.

Vejo isso e fico com vontade de cantar aquela música consagrada pelo Vicente Celestino:

“Acorda, patativa, e vem cantar. Relembra, as madrugadas que lá vão...”

Será que somos cidadãos ?, do Eloy Simoes*

*Especialista em comunicação de marketing, jornalista, professor e consultor, responde hoje pelo projeto mercadológico do Sistema Integrado de Comunicação da Unisul, em Santa Catarina.

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