A auto-desajuda de nietsche.
Paro em frente à vitrine da livraria famosíssima em Curitiba. Livros de auto-ajuda por toda parte. Eu, em meio à uma discreta – e, às vezes, não tão discreta – depressão que dura toda a minha vida, deveria os ler, sim. Parecem, pelos títulos expostos ali, que ensinariam-me a vencer na vida, no amor, a aparentar sucesso profissional. Um deles até mesmo promete que descobriria O Poder dentro de mim e outros a encontrar quem mexeu no meus queijos e salames, provavelmente nomes novos para coisas espirituais. Encosto a testa no vidro, num desânimo, por saber o que todos eles dizem: que devo repetir para mim mesma, por dez minutos, todas as manhãs, que sou um sucesso. Que devo vestir-me como uma pessoa de sucesso, que devo dizer em voz alta nomes de virtudes humanas. (Oh, contava, dia desses, um amigo, que, todas as sextas-feiras, em sua empresa, uma terapeuta faz os funcionários jogarem bolas coloridas para cima, enquanto gritam nomes de virtudes humanas como: “Perseverança!”, “Coragem!”, “Fraternidade!”.) Ponho a mão no bolso para pegar mais um anti-ácido.
Decido sentar na praça, em frente à livraria famosa em que não entrei, com minha velha edição de bolso de Ecce Homo – de como a gente se torna o que a gente é, de Friedrich Nietzsche (L&PM, 2004, 206 págs.). Ele nunca estará na lista dos mais vendidos, ele nunca estará num daqueles pedestais ornados da livraria, porque Nietzsche percorre o caminho mais difícil, porque ler Nietzsche não é para qualquer um.
O mundo todo está numa corrida por virtudes humanas. Agora, ser virtuoso é bem de consumo. Antes eram os carros, a posição profissional. Depois o corpo, os músculos, o silicone, as bolsas da Daslu. Agora está na moda ser bom. Vejo as camisetas, pulseirinhas, em prol de todas as causas possíveis: guaxinins em extinção no sudoeste do Sri Lanka, criancinhas famélicas da África, o grupo de senhoras bordadeiras de São João do Triunfo... e você nem precisa conhecê-los, não, compra-se pela internet: pulseirinhas, camisetas, xícaras, imãs de geladeira da bondade humana. Acaba de passar um rapaz com meia-dúzia de pulseirinhas em prol de desabrigados, famintos e clubes de futebol falidos. Com o livro no colo, dou um meio sorriso: “a piedade é uma virtude apenas para os décadents”.
(Ah, Friedrich, por você, muitas vezes, enlouqueço, percorrendo a casa de pijamas, tateando as paredes às cegas e resmungando: "Friedrich, Friedrich, por que você morreu? Quem mais dirá tão verdadeiras coisas, meu querido?").
E calem-se nossos conceitos de Bem e Mal, para compreender Nietzsche, cale-se tudo o que se tenha aprendido. O rapaz das pulseirinhas não sabia, e, nem a moça que passa agora, com uma camiseta do Greenpeace e bolsa da campanha do "Sim" à proibição do comércio de armas, que pensava ele ser a piedade, seja com as baleias ou os times de futebol, muito parecida com as más maneiras, e, que aquela poderia interferir no destino da criatura de maneira trágica. Tiramos dela o sofrimento, tiramos dela o privilégio de crescer, e ela não se torna o que poderia ser.
Manipular pessoas com sorrisos e bajulações, galgar postos às custas do Poder dentro de Nós, e outras fórmulas que os livros de auto-ajuda ensinam, Nietzsche, há mais de cem anos, já havia desmascarado: “A condição de existência dos bons é a mentira”. Por não quererem ver, a todo custo, como a realidade é constituída no fundo. A realidade, e seus horrores são mais necessários que a bondade, por ser esta de caráter mentiroso. Desvio os olhos do livro, já sorrindo completamente. Ler Nietzsche não é para qualquer um.
Uma senhora sai da livraria, felicíssima, com seu livro de auto-ajuda. Que lhe dirá mentiras horrendas sobre a alegria do otimismo. Fará a velhinha feliz, por, talvez, meia-hora. Diria Nietzsche: “o otimista é tão décadent quanto o pessimista, e talvez mais daninho do que ele".
Fico a observar a vitrine. Aquelas pilhas e pilhas de papel, todos aqueles livros, listas de mais-vendidos, em vão. Noites de autógrafos, fãs desesperadas em busca de autógrafos dos autores, que viraram celebridades. Friedrich Nietzche havia dito que, numa frase, poderia escrever muito mais do que muitos em livros inteiros, e escreveu-as. E valem, valem mais do que todos aqueles livros. Ah, para todos os problemas da humanidade, a solução era tão simples: “No fato de um homem bem-educado fazer bem aos nossos sentidos: no fato de ele ser talhado em uma madeira que é dura, suave e cheirosa ao mesmo tempo. A ele só faz gosto o que lhe é salutar; seu prazer acaba onde as fronteiras do salutar passam a estar em perigo. O que não acaba com ele, fortalece-o. Acumula por instinto tudo aquilo o que vê, ouve e experimenta: é um princípio selecionador, ele reprova muito. Ele está sempre em sua própria companhia, honra pelo ato de selecionar, pelo ato de permitir, pelo ato de confiar. A todo tipo de estímulo ele reage lentamente, com aquela lentidão que uma longa cautela e um orgulho desejado inculcaram nele. Não acredita nem no infortúnio, nem na culpa: ele dá conta de si mesmo, ele sabe esquecer. Ele é forte o suficiente a ponto de fazer com que tudo tenha de vir para o seu bem... Vá lá, eu sou o antípoda de um décadent: pois acabei de descrever a mim mesmo.”
Deixo a praça. Não comprei nenhum livro, nenhuma pulseirinha, nenhuma camiseta. Eu precisaria mesmo era comprar um novo exemplar de Ecce Homo, que o meu, por tanto manuseio e anotações nas margens, está se desmanchando. Mas, meu livro de auto-desajuda, naquela livraria, certamente, não iria ter.
Andréa Trompczynski, no, para muitos, (in)digestivo cultural.
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