sábado, outubro 01, 2005

ontem ele, hoje eu, amanhã vocé

Sorria. Você está desempregado (baseado em fatos reais)

29/9/2005 16:48:56
Quando você não tem mais que ir trabalhar todos os dias, das duas, uma: ou acertou em cheio na Mega Sena ou está desempregado. Pode haver uma terceira alternativa, a de você ser um vagabundo, mas já não se fazem mais nem vagabundos como os de antigamente. Os de hoje estão empregados.
Na semana passada, lá pelo dia 20 deste setembro, contrariando o habitual esquecimento com os números, fui lá e lasquei as minhas seis dezenas na esperança de me tornar um vagabundo milionário, daqueles que flanam pelo mundo e não fingem que trabalham. Quando fui conferir, o resultado deu demitido, desempregado, na rua, sem trabalho, pois é, então.
Pra quem ainda não sabe, o olho da rua é um ponto de vista surrealista. É possível observar a paisagem sob novos ângulos. O primeiro deles é o mesmo de alguém que estava num dos aviões daquele 11 de setembro. E, por interferência de Alá, sobreviveu. Fumaça, poeira, mortos, gritos e gemidos. E todos eles são seus. Você está irremediavelmente sozinho e ferido. É preciso buscar ajuda. Onde?
Numa catástrofe pública, é relativamente fácil, se você não estiver no nordeste do Brasil ou em New Orleans. Quando o desastre é pessoal, não tem lugar pra você na ambulância e o HPS bota pra correr quem não está pingando sangue. Você move um pé, outro e vai, não exatamente em frente, mas na direção de um redemoinho de pensamentos, arrastado por um labirinto sem saída. A sensação de tontura é vertiginosa, próxima a de alguém que se jogou em um precipício. Nunca fiz isso, mas a sensação é nítida, você despencando para algo cada vez mais fundo, tudo passando em alta velocidade, como num trem-bala desgovernado ou um boeing despencando sobre o Mar Morto.
Mas uma hora você aterrissa. Sua casa. A fechadura. A chave. Você entra. Ir ao banheiro. A tampa da patente. O rapaz em punho. Chiiiiiiiiiiii, não é a mesma coisa, o alívio não é o habitual. O seu metabolismo captou que algo de grave está acontecendo e entrou em pane. Até pra fazer xixi.
Você não tem mais horário pra nada, nem pra comer ou dormir, mas com o tempo você e o seu intrínseco metabolismo melhoram. Sua rotina não existe mais. Agora é preciso buscar outra, bem melhor da que o colocou nesse impasse. Então, vamos lá, isso é estimulante. Mas como se faz isso?
Telefone, internet, bate-papos, perguntas, fofocas, mensagens de apoio, alegria, alegria, cervejada com os ex-colegas, enviar currículo - assim como não sabemos para onde vão os guarda-chuvas perdidos, nas mãos de quem vão parar os currículos? - ligar para o fulano, ser positivo, torcer para que atenda, marcar uma entrevista. Para quando? Semana que vem, talvez. É aí que você é arremessado para o futuro como uma pedra inerte e o tal do futuro começa a parecer mais Rosebud do que já era. Semana que vem é o Século 22. Tudo é já. Ou dèja vú. E você não tem uma paciência budista nem a imaginação de Isaac Asimov.
Mas como tudo tem lados infinitos, vá até lá embaixo. É a lei. Da gravidade. Encontre o chão. Mesmo que você tenha a sensação de que o chão é mais um ponto de vista ilusório.
Deixe-se cair. A queda é livre, a vida é uma amostra grátis. E ler a bula não é o melhor remédio.

André Martins
redator desempreagado
email@doandremartins.com.br

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