domingo, dezembro 04, 2005

carrascos de si mesmos *

sou homem. não julgo alheio de mim nada do que é humano. terêncio, 190-150 ac.

prólogo – o que é mais importante para a construção de uma sociedade estável ? a sexualidade de um homem ou sua coerência política ? caráter e princípios ou sua preferência sexual ?

questões profundas. oscar wilde tinha uma triste, belíssima e contudente razão no de profundis, escrito nas celas da prisão, condenado que foi, na inglaterra dos lordes, pelo “crime” de afrontar a hipocrisia e viver sua homossexualidade.

alguns vereadores da câmara municipal de joão pessoa confirmaram tais questões. com virulenta, sórdida e ignominiosa escrita.

ato I – ricardo coutinho, vereador do pt, apresentou requerimento “as captandun minorias” por uma moção de solidariedade. não aos negros, nordestinos ou as mulheres. mas ao homossexuais.

foi o bastante para que o congênere genivaldo fausto, do pfl, colocar fogo nos lençóis e mostrar que cãmara não é cama. e, se fosse, seria de macho. e bota macho nisso. eu disse macho ? leia-se baixo.

o que poderia ser vetado ou apoiado de acordo com suas convicções, senão com a elegância que se espera de homens públicos – nós eleitores desejamos isso mais do que qualquer desejo em nossa peregrinação por homens de verdade – transformou-se num grotesco espetáculo de alto-nível-baixo, destacado, distorcido, mas não aprofundado pela imprensa.

ricardo, entusiasmado, bem intencionado ou não, vislumbrou a oportunidade de levar a luta do pt em outras frentes, a sexual, terreno minado pelo preconceito e estigmatização, esquecendo-se, no caso, antes e depois, talvez pela míopia política que costuma se abater sobre os próprios, que o grande problema de ser gay – termo julgado politicamente incorreto pelos próprios – é sua condição econômica, o problema de qualquer minoria, o que revela um paradoxo da democracia: a soma do todo não é maior que as partes. e neste regime as minorias não tem vez. não que eu seja antidemocrático, dos males o menor. mas joão pessoa não é amsterdã, são francisco. onde os homossexuais tem efetivas forças de representação – a luta não para apesar de inúmeras conquistas – e não vivem em guetos. tem restaurantes, farmacias, academias, clínicas, etc, não como esconderijo, mas sim como mostruário da sua importância como segmento economicamente significativo a ponto de existirem produtos e campanhas publicitárias –até de automóveis – específicas para os homossexuais.

a questão é complexa cultural,sócio antropologicamente e economicamente falando. mas daí a cair na chacota,e na baixaria,nos leva dolorosamente a refletir sobre a opção preferencial e cível de quem nos representa na câmara. Se fazem isso publicamente, é de se imaginar o que não fazem em grupelhos, em suas casas, e com suas famílias.

ato II - genival que não é nada fausto em suas argumentações, vislumbrou fantasmas freud-reichianos nas intenções e nos andares dos vereadores que disseram sim à moção. segurou os culhões e partiu contra. com aquela desenvoltura que só os machos de sua espécie sabem ter: a da baixaria, da insinuação jocosa, da difamção, do perjúrio. bombardeou a moção com o arrasto dos vereadores à condição de homens de macheza duvidosa, como se isto fosse condição à priori para qualificar o requerimento.

o comportamento truculento de genival fausto, como bem mostram enquetes sociológicas e perfis psicológicos é frequente em machos típicos que à noite buscam travestis não emasculados para equacionar sua dicotomia entre a fascinação de dominar e ser dominado em jogos pra muiti além da câmara. como se não bastasse, gabou-se de “ partes grandes “. rogéria, garantem os íntimos é um desperdício . eisso não mudou sua alma feminina. dolmancé, personagem de sade- a vida imita a arte – tinha 25 centímetros por oito de diâmetro, e era um passivo insaciável. assim, vale não o tamanho da vara. e sim a mágica que ela faz, garantem os andrologistas.

genival poderia discordar. até veementemente, de acordo com seus princípios existencias. mas tem a obrigação de respeitar o primado político das posições dessemelhantes entre os iguais. mas qual o quê. o homem é macho. e macho é assim mesmo, ou não é ?

ato III – se causa espanto ? a reação de genivaldo fausto, o que dizer do vereador marco antônio, que quis pretenciosamente substituir robert redford – sem o milhão de dólares – com uma proposta indecente, respondendo na mesma moeda ideológica do opositor – a da baxaria e do desrespeito ao mínimo senso de decência em nome do qual arvoram-se – marco antônio bem que poderia ser o romano,mas não. enveredou, imberbe, pela posição muito macho, concitando, a quem duvida de tal macheza, a emprestar-lhe suas mulheres, para ouvir após noite dormida seus depoimentos insuspeitos sobre sua gaboleada condição(deveria então dormir com o genivaldo). ejaculação precoce, marco antônio. homossexuais fazem muito sucesso entre as mulheres, talvez porque não tão afoitos, respeitam o tempo feminino, proporcionando-lhes orgasmos múltiplos, coisa que mulher de muito macho não desconfia de ser possível.

epílogo – do restante das argumentações, até a do sou casado, como se homossexuais não casassem(inter e intra matrimônios) salvou-se a posição de trocolli júnior, menos truculenta, escorado no humor, pelo menos no episódio, porque se não verticalizou a questão, não baixou ainda mais o nível.

da peça fica – não a temática da qual se aproveitam oportunistas para perpetuar ainda mais a ignorância, o preconceito, a dominância, de um povo perdido nesta fase suja – é que: como políticos, numa fase tão miseravelmente degradante da vida política do pais – e do estado – se prestam para tais papéis ? talvez porque são políticos mesmo precisando de um voto de solidariedade principalmente nas urnas, que logo estarão abertas a uma minoria – que não interessa sua preferência sexual. é melhor um homossexual feliz, do que um desencontrado a cometer estupros e sexídios, com adultos e crianças – minoria esta que saiba honrar o voto do eleitor que espera que tais vereadores compareçam a câmara para quebrar, isto sim, a imensa cadeia de preconceito contra a honestidade, a inteligência, a determinação em lutar contra o descalabro em que está mergulhada a sociedade brasileira, sem opção alguma, senão a de assistir a este triste espetáculo.

carrascos de outrem. carrascos de sí mesmos, estes vereadores.
mu não sou. mas quem não é ?
ecoa na câmara de vereadores de joão pessoa o fantasma da sexualidade de profundis.


*publicado no correio da paraiba, em 22 de junho de 1993, sob a rubrica crítica de cultura e idéias. texto integral, conforme original.
ricardo coutinho é hoje prefeito de joão pessoa pelo pt. genivaldo não sabemos se teve carreita fausta ou se marco antônio foi para holiúdi.
o presente texto, conforme mapa editorial, inicia uma série entitulada “unhas e dentes”, que posteriormente será publicada como livro, juntamente com textos jornalísticos atuais. os textos trazem a marca do jornalismo de intervenção num tempo em que cabeça de jornalista tinha como cotonete baioneta. seja pela pressão da ditadura. seja pela pressão do coronelismo de asfalto que ainda hoje faz vítimas nordeste afora.

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