Confesso que a primeira vez que ví esse comercial da maionese Hellmans, com os canibais comendo vegetais, nem dei muita bola. Na minha cabeça de publicitário, observando alguns frames já conseguí prever a idéia do filme. Foi só ver um explorador comendo algumas folhas com maionese em volta de uma tribo com cara pouco simpática, que logo deduzi o desfecho: até quem só gosta de carne vai adorar a maionese Hellmans numa saladinha. Pronto. E seguimos em frente, até voltar aquele programa que o intervalo interrompeu.
E mal sabia que épicas batalhas judiciais aconteciam em paralelo por causa deste comercial de 30 segundos. Parece que a multa pode passar dos R$ 3 milhões. Mas por que? De início, ninguém sabia muito bem a causa, acho que não era fácil deduzir. Mas ao ler algumas reportagens essa semana tudo ficou bem claro para mim: o comercial dos canibais estava fomentando a segregação racial. É claro, mostrar uma tribo de negros em plena savana africana com tendências antropofágicas é realmente um atentado discriminatório com os negros. Mas calma aí, se não estou enganado, na savana africana só existem tribos negras. Ei, algumas delas realmente são canibais! Então acho que não entendí nada.
Na realidade, essa história de mostrar tribos canibais em produções audiovisuais não é nova, ela remonta à uma antiga tradição de Hollywood em explorar essa realidade peculiar de alguns grupos tribais e existe no imaginário coletivo de toda pessoa atinginda pela mídia de massa.
É verdade que o canibalismo aconteceu na América do Sul, na América do Norte e na África, e que apesar de Robinson Crusoé, ela foi mais enfatizada nos ambientes selvagens africanos. As aventuras de Alan Quatermain, de Indiana Jones, de Ace Ventura e sei lá mais quantos filmes na África, demonstram bem isso. E é até fácil entender, são lugares remotos, de difícil acesso, de bela fotografia e de cultura singular. Mas não me recordo de grandes polêmicas sobre estes e noutros filmes.
Até convém lembrar: essas produções foram e são feitas porque o canibalismo é uma realidade humana, muito estranha de fato, mas verdadeira. E é sustentada numa curiosa e estranha constatação: pessoas comem outras pessoas. E fato ninguém discute. Mas o que se discute então? Proibir o uso lúdico dos personagens canibais para contar histórias, ou escolher qual raça deve estar representada nelas? Será que o politicamente correto não admite que se mostrem negros canibais africanos apenas por serem negros? Ou será que devem existir cotas raciais para se mostrar tribos canibais? Se for isso, caimos num problema geográfico: em tribos africanas não existem brancos, pardos ou morenos. Em tribos sulamericanas não existem negros, mulatos ou loiros. A solução então é banir situações cômicas de canibais em produções audiovisuais.
Não quero entrar numa discussão moral, mas quem disse que um ser humano é intrínsicamente pior que outro em dignidade por fazer parte de uma cultura onde o canibalismo é aceito? E mais, quem disse que se ele for um negro, todos os outros negros no mundo serão necessariamente piores dos que os humanos de outras raças? Ou que todos os brancos são doentes porque Hitler era branco? Ou que os sulamericanos são toscos porque alguns deles ainda cultuam o sol?
Penso que aqui o simples uso do bom senso seria uma boa ferramenta. Vamos lá: o que o comercial da Hellmans realmente quer dizer? Qual foi objetivo dessa comunicação? Qual foi a intenção da criação? Está lançando mão de inverdade, induzindo ao erro ou a desonestidade? Porque por mais vezes que eu assista esse comercial, admito sinceramente que não consigo enxergar alí diacho nenhum de segregação ou discriminação racial. Assim como não consigo enxergar discriminação racial no Saci Pererê por ser travesso e ter apenas uma perna e ter pele negra.
Será que então não seria a hora de ressuscitar um código de ética publicitário verdadeiro, pautado em princípios, em direitos e em deveres, com limites bem claros e que seja de fato respeitado por publicitários e sociedade civil? Que observe o respeito racial, o sentimento religioso, a identidade sexual, a cultura e todos aqueles valores que estão presentes em todos os seres humanos. Mas que não seja paranóico, que tenha bom senso e razão de ser, que seja objetivo e esteja acima de opiniões e “verdades privadas”? Porque do jeito que está, agências trabalham por nada, dinheiro de cliente vai pra fornalha e a qualidade criativa pro espaço.
Ou criamos um terreno firme e sólido para trabalhar ou corremos o risco da publicidade ser canibalizada de vez. E deste círculo é difícil sair coisa boa: cliente cada vez mais inseguro, propaganda cada vez mais chata e encarada como um “mal necessário”, e público de mal com essa atividade, processando a tudo e a todos.
Ou colocamos a base da propaganda na razão ou o consenso relativista toma conta. Ou nos protegemos, mesmo que renunciando a alguns excessos de liberdade, ou daqui a alguns anos o jurídico vai se mudar para a criação. Ou os criativos, esses vendedores essencialmente iguais a quaisquer outros, vão precisar de pós em direito. E na São Francisco.
do silvio medeiros, diretor de arte da jwt brasil
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