sábado, janeiro 28, 2006

ser cafona já foi revolucionário. ou seria o contrário ?

Dentro do grande armário da música popular brasileira, a obra de Odair José quase sempre ficou guardada numa gaveta modesta, de cuja clausura só escapuliam rótulos como “brega”, “cafona”, “popularesco”, “limitado”... A novidade é que cresce uma frente de oposição à compreensão corrente, que tem historicamente mantido em trincheiras inimigas as classes ditas intelectualizadas e o povo.

A denúncia de preconceito classista por trás desse cisma foi inaugurada pelo historiador, jornalista e professor Paulo Cesar de Araújo no “livro-guerrilha” Eu Não Sou Cachorro, Não (Record, 2002), que luta para demonstrar por A mais B que o “sapo” Odair foi tão perseguido e censurado pela ditadura militar quanto o “príncipe” Chico Buarque. Agora, esse grupo ganha um reforço importante: 18 dos roqueiros mais modernos do País uniram-se para gravar de modo independente e cooperativo o CD Vou Tirar Você Desse Lugar – Tributo a Odair José.

O cantor é homenageado não como ídolo “cafona”, mas como um rebelde que afrontou os costumes e a ditadura.

A denúncia de preconceito classista por trás desse cisma foi inaugurada pelo historiador, jornalista e professor Paulo Cesar de Araújo no “livro-guerrilha” Eu Não Sou Cachorro, Não (Record, 2002), que luta para demonstrar por A mais B que o “sapo” Odair foi tão perseguido e censurado pela ditadura militar quanto o “príncipe” Chico Buarque. Agora, esse grupo ganha um reforço importante: 18 dos roqueiros mais modernos do País uniram-se para gravar de modo independente e cooperativo o CD Vou Tirar Você Desse Lugar – Tributo a Odair José.

Aos 57 anos, do condomínio fechado onde mora com a mulher e dois filhos nas imediações de São Paulo, Odair José contempla a movimentação com olhar impassível, mas algo surpreso. “Tenho cantado em lugares ótimos, para pessoas até muito esclarecidas. Para lugares mais populares não me contratam mais. Ou então, quando vou, não é um arraso”, descreve, antes de ensaiar uma explicação: “Hoje o povo prefere o que não o faça parar para pensar”.

Eis aí um ponto que poderia frear logo de início a tentativa de entender o fenômeno: mas Odair José lá fazia música “para pensar”? Vejamos.

Ao migrar de Morrinhos (GO) para o Rio de Janeiro, em 1966, o adolescente fugido de casa dormiu em ruas, praias e banheiros de aeroporto, até encontrar abrigo entre estudantes que, como ele, comiam no restaurante Calabouço e lideravam passeatas contra a ditadura.

Após uma fase em que “à noite tocava em puteiros, de dia enchia o saco das gravadoras”, materializou o sonho musical na CBS, onde estreou em 1970. “Um dia, (o produtor) Rossini Pinto me disse que a companhia estava insatisfeita com meus resultados, que iam me dar a chance de fazer mais um compacto e, se não desse certo, era tchau e bênção.”

Foi para casa e voltou com Vou Tirar Você Desse Lugar, de um narrador que se declarava à namorada e prometia resgatá-la do prostíbulo em que ela trabalhava. Rossini odiou (“Disse ‘pô, os caras lhe fazem um favor e você vem com essa merda?’”), mas deixou passar – e o compacto vendeu a bagatela de 800 mil cópias. O Brasil de 1972, em pleno reinado do terror, aprendia a pensar sobre o tema-tabu da prostituição.

A bordo do sucesso nacional, Odair se mandou da CBS: o executivo André Midani tirou o novo ídolo popular daquele lugar. Um ano após a estréia na Philips, bateu de frente com a ditadura pela primeira vez, e absolutamente sem querer. O governo patrocinava a entrada da pílula anticoncepcional no Brasil, e Odair foi instigado por um amigo a colaborar na difusão do tema.

O resultado: enquanto o governo alavancava a campanha “Tome a pílula com muito amor”, Odair inverteu tudo e saiu gritando “pare de tomar a pílula/ ela não deixa o nosso filho nascer”. A canção já estava na boca do povo quando a Censura percebeu o estrago e a interditou.

Hoje Odair se diverte com a comédia de erros que co-protagonizou: “Acho que o governo proibiu a música errada. Se eles queriam que todo mundo tomasse a pílula, era melhor deixar. Ninguém aqui sabia de pílula, eu estava contando que existia, mais gente podia usar por causa da música”. E o Brasil de 1973, em pleno horror oficial à simples menção da palavra “sexo”, aprendia a pensar em sexo, contracepção e tabus afins.

Desobediente, Odair seguiu cantando a música em shows pelo País. Atendia o clamor do público subalterno que o acompanhava e por isso foi repetidas vezes reprimido, intimidado e preso pelo regime.

Voltou a cair nas malhas da Censura em 1974, quando tentava lançar A Primeira Noite de um Homem, agora cutucando o tabu da virgindade masculina. Por conta dessa, esteve cara a cara em Brasília com o general Golbery do Couto e Silva, por intermediação de um censor amigo que, segundo ele, “gostava dos artistas”.

“Ele me levou até o Golbery, que passou os olhos na letra, nem olhou na minha cara e disse: ‘O que está proibido é a idéia’.” O alto comando fardado do Brasil aprendia, nem que por um só instante, a pensar em música e em artistas populares como Odair José.

Ainda em 1973, Caetano Veloso tentou escalar os muros das classes sócio-político-musicais e convidou Odair a dividir com ele, no evento coletivo Phono 73 (CartaCapital nº 369), uma reinterpretação de Vou Tirar Você Desse Lugar. O galã suburbano foi recebido com vaias intensas pelo público universitário.

“Era um público de pessoas, entre aspas, conhecedoras dos problemas do País, que queriam ser líderes e comandar o País em benefício do povo, mas que na verdade tentavam fazer isso rejeitando o próprio povo”, reavalia Odair. Se no mesmo evento a Censura tirava os microfones de Chico Buarque e Gilberto Gil para impedi-los de cantar Cálice, Odair resistiu sozinho à saída irritada de Caetano do palco e acabou cantando... a censuradíssima Pare de Tomar a Pílula.

Confusão menor causou Deixe Essa Vergonha de Lado (1973), em que o narrador rogava à namorada, em tom tristíssimo, que parasse de esconder dele o ofício de empregada doméstica em casa de “gente importante”: “Eu já sei que o seu quarto fica lá no fundo/ e se você pudesse fugia desse mundo”. O Brasil era forçado a repensar incômodos ocultos nos quartos de despejo; e, instigada pelo apoio do cantor popular, a classe das empregadas domésticas foi à luta e conquistou o direito à sindicalização.

A balada atraiu para o autor o apelido pejorativo de “terror das empregadas”. “Foram Rita Lee e Paulo Coelho que começaram, naquela música Arrombou a Festa. Começou a surgir o negócio do ‘cantor das empregadas’, do ‘cantor das putas’. Na época eu nem via o preconceito por trás disso.”

Experiência “de corte” seria o projeto O Filho de José e Maria (1977), ópera-rock que atraiu a ira da Igreja Católica (um padre chegou a excomungar o cantor): além de investir contra o casamento e defender a instituição do divórcio, apresentava um Jesus Cristo pós-moderno, em conflito com a própria sexualidade. “As pessoas precisam saber da verdade/ (...) não sei por que você não se assume pra viver”, protestava.

“Fui ao Vaticano e voltei apavorado. Cada castiçal daqueles mataria a fome de muita gente”, reflete Odair, convicto do acerto do LP “fracassado”.

É esse Odair José mais complexo e contraditório, e não mais a caricatura cafajeste do “terror das empregadas”, que os revisionistas procuram agora tirar da gaveta. Descentralizado, o tributo une nesse propósito bandas que enviaram releituras fabricadas no Pará (Suzana Flag), Paraná (Poléxia, Terminal Guadalupe), Pernambuco (Mombojó, Volver), Brasília (Suíte Super Luxo) etc., e mesmo nomes mais conhecidos como Zeca Baleiro, Paulo Miklos, Mundo Livre S/A...

“Não houve cobrança de cachês, a maioria esmagadora das bandas bancou os próprios custos. Todos têm participação nas vendas do CD”, explica Sandro Rogério Lima Belo, economista, professor universitário e dono do selo musical Allegro, que coordenou o projeto a partir de Goiânia.

O suporte teórico concentra-se no texto de Paulo Cesar de Araújo no encarte, que defende que artistas como Odair José enfrentaram duas ditaduras simultâneas – a político-militar e outra de tez cultural, que persiste até hoje. “A ditadura das elites culturais exclui, segrega e rotula, e isso é uma quase doença, uma patologia cultural-ideológica”, revolta-se o pesquisador a CartaCapital.

Entre as bandas participantes, as motivações para embarcar na aventura mostram-se variáveis. Reinaldo Andreatta, do paulista Sufrågio, brinca de mesclar razões assumidamente comerciais com outras 100% emotivas: “Fui criado por dona Natalina, uma brilhante cantora do lar, já falecida, que tenho certeza que se orgulha da homenagem dos filhos Reinaldo e Ronaldo a ela. Para minha banda, que é ótima, mas não tem espaço na mídia, também foi uma oportunidade de aparecer um pouco”.

Fernanda Takai, do Pato Fu, confessa que hesitou em topar por não ver ligação direta a princípio, mas logo mudou de idéia: “Achei que era um jeito bacana de se colocar um novo foco sobre parte da música brasileira que é esquecida como obra”.

Já o gaúcho Arthur de Faria classifica Odair como “gênio” e se empolga pela “delicadeza e tolerância” que perpassam a obra. “São canções de carinho absoluto pelo gênero humano, de uma doçura comovente, de uma singeleza. A chave maior é esta: gentileza. Ele é encantador.”

Tatá Aeroplano, do paulistano Jumbo Elektro, balança entre a superação de preconceitos e a mera diversão: “Na banda a gente quer mesmo é deixar a vergonha de lado e se divertir. Acho que hoje essa coisa de gostar escondido está acabando”.

É nesse embalo de gente chegando de vários outros lugares que Odair José, entre sereno e incrédulo, vai botando seu bloco na rua outra vez (à frente da Bíblia e da imagem religiosa que segue admirando e contestando)

a outra vida de odair, por pedro alexandre sanches para carta capital

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