terça-feira, maio 03, 2005

deus criou a idéia. o diabo a ficha técnica.

Acho bem provável que eu saia chamuscado ao tocar neste assunto, mas tenho uma incontrolável vocação para arrumar encrenca. Vou falar de prêmios e de fichas técnicas. Na verdade, adoro uma coisa. E detesto a outra.
Ah, que saudade dos tempos em que a gente criava sem pensar na famigerada ficha técnica. Lá se vão anos, mas vale a pena recordar.
As coisas eram mais ou menos assim: os cabelos e barbas eram compridos, as roupas meio surradas, e o ar era de intelectual que não compactuava com "isso que está aí". Ganhar dinheiro, ficar famoso e ser premiado tinha, sim, lá no fundinho de nossas almas, algum valor. Mas vinha depois de premências bem maiores como, por exemplo, comer umas estagiárias. Resolvido isso, a gente só queria se divertir, passar algumas idéias subversivas nas entrelinhas dos anúncios e, se possível, biritar depois do expediente.
Por isso, nosso dia-a-dia era bem menos angustiante e sofrido. Baseava-se em receber o pedido de trabalho, estudar a necessidade do cliente, pensar em idéias que solucionassem aquele problema e, de quebra, nos divertirmos criando coisas irreverentes, ousadas, mas quase sempre extremamente eficazes. E ainda recebíamos um bom salário no fim do mês. Sem correr atrás dos nossos nomezinhos em fichas técnicas, até porque eles apareciam lá, automaticamente, no caso de um prêmio. Bem, devo dizer que era, no mínimo, menos estressante. Mas esse tempo passou.
Infelizmente, o que vejo hoje é uma gente neurótica, checando calendários de premiações, verificando fichas técnicas com olhos nervosos, folheando Ar(gh!)chives, fotografando ou manipulando imagens, imprimindo anúncios que muitas vezes nunca viram e nem verão a luz da mídia. Todos catando afoitos, aqui e ali, os possíveis focos dos holofotes imaginários de um mercado que virou show-bizz de otário.
Enquanto isso, os salários despencam, as faculdades e cursinhos "mágicos" se multiplicam, os portifólios fantasmas viram padrão. E só vejo gente triste nas festinhas, cada vez mais caídas, a que ainda costumamos ir para espantar o tédio.
O que mudou? Bem, os clientes de hoje, pequenos ou grandes, nacionais ou multinacionais, estão muito diferentes. Quantas vezes você apresentou um filme, nos últimos anos, a um grupo de pessoas atentas, que olhavam para você em vez de ficarem anotando coisas num bloco de papel? Fica uma certa tensão no ar. Você lá na frente, se descabelando, interpretando o personagem, fazendo caras e bocas, cantando, dançando. E eles com a cara enfiada no bloco, anotando, conferindo, calculando. No final, um deles explica porque a sua idéia não atingiu os níveis mínimos de persuasão determinados num manualzinho. Você acha que eles fazem isso de sacanagem? Talvez. Mas, na maioria dos casos, eles também estão mais tristes e inseguros.
Houve uma época em que podiam analisar as idéias de uma forma mais ou menos clara, direta e, claro, descaradamente subjetiva: "gostei muito", ou "não gostei".
A globalização e o marketing moderno trocaram estas análises e perguntas por outras muito mais técnicas e circunspectas, como:
"-Esta peça não tem o look and feel da nossa marca." Ou "- Onde está o plano de "taste & pleasure?"
Ficou bem mais difícil aprovar as boas idéias simplesmente por sua inovação, pelo seu humor ou por sua leveza. Elas assustam, porque geralmente escapam de todos os books ou dos padrões estabelecidos em workshops internacionais. Muitas vezes o cliente gostaria de aprovar, mas não pode.
Temos que trabalhar mais e mais, sempre atentos a possíveis brechas que nos permitam exercer a profissão com mais prazer e dignidade. Fazer o "dever de casa" direitinho e, aos poucos, ir propondo outros caminhos, mais criativos, mais soltos e mais impactantes. Trabalhar sério, tentar entender o processo, para conquistar passo a passo a confiança e a cumplicidade do cliente.
Dá uma trabalheira danada e demora intermináveis meses, até anos, para render alguns frutos. Mas essa é, feliz ou infelizmente, a nova realidade. E é com ela que temos que aprender a lidar, até porque somos pagos para isso.
É uma realidade dura e desgastante, que tem levado muitos criativos ao desvio do fantasminha camarada. Mas, cuidado, este pode ser um caminho sem volta. De fantasma em fantasma, um dia você vai se perder no meio do devaneio, sem saber ao certo o que é real e o que é fantasia.
Aí, você vai querer voltar. Tomara que, na volta, você ainda encontre o seu emprego.
Toninho Lima - Diretor Associado de Criação - McCann Rio (o título deste post é do toninho também).

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