cidadão kane;deus e o diabo na terra do sol; ulysses, os cantos, keats, pynchon, boulez. nem vou extender-me, quanto mais abarcar o universo das artes, onde encontramos aquelas obras de que quase todos minimamente intelectualmente praticantes já conviveram de ouvir falar.
é certo que a profissão de publicitário sempre pediu a nós leituras diagonais, três minutos a mais do que um trailler, quatro páginas ao começo, meio e ao fim, para além das orelhas, de maneira que abosorvessemos o mínimo de informação necessária para processar-mos insights, referências, influências. até há quem já disse que o publicitário é aquele que mais sabe tudo sobre nada. conhecimento superficial? nem sempre. mas nem sempre, nem o superficial. ainda mais agora, com o desenvolvimento da internet, onde o volume de informações é tanto que nem dá mais para saber nada sobre tudo.
mas não estou falando disto. falo de alguns adiamentos que vamos fazendo em relação a estas obras, que de tão faladas e famosas, citadas, exibidas, não as podemos ignorar mas também tomamos conhecimento delas aos pedaços como uma colcha de retalhos e quase nunca por inteiro as saboreando. cidadão kane, acreditem, nunca vi por inteiro. deus o o diabo na terra do sol, conheço tudo dos créditos mas nunca o assisti de cabo a rabo.
sinal dos tempos ou das minhas têmporas? estou decidido a acabar com este tipo de incompletudes na minha vida, pelo menos essas. vou ler ulysses, o ser e o nada, assistir citizen kane e me esbaldar com jardel filho e othon bastos arrebentando em deus e o diabo na terra do sol.
afinal, tem certas coisas nesta vida que você não pode adiar mais. vai que você morre, e aí ? vai ser um inferno.
dantesco ?
o trecho abaixo, é de um dos livros mais comentados, lembrados, citados, endeusados, renomado e, acima de tudo, ensimesmado, comum a todos que o leram e os que não leram é a pedreira em que se constitui o ler. saberiam vocês dizerem qual ?
... ...Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou:
- Introibo ad altare Dei.
Parado, ele perscrutou a escada sombria de caracol e gritou asperamente:
- Suba, Kinch! Suba, seu temível jesuíta!
Solenemente ele avançou para a plataforma de tiro. Olhou à volta e seriamente abençoou três vezes a torre, o terreno à volta e as montanhas que despertavam. Em seguida, avistando Stephen Dedalus, ele se inclinou em direção a ele e fez cruzes rápidas no ar, gorgolejando na garganta e sacudindo a cabeça. Contrariado e sonolento, Stephen Dedalus apoiou os braços no último degrau da escada e olhou friamente para o rosto sacolejante e gorgolejante que o abençoava, para a cabeça eqüina e os cabelos claros sem tonsura, tingidos e matizados como carvalho descorado.
Buck Mulligan espreitou por um instante por baixo do espelho e depois cobriu a tigela rapidamente.
- De volta pro quartel! - disse implacavelmente.
E acrescentou em tom sacerdotal:
- Pois isto, meus bem-amados, é a verdadeira cristina: corpo e alma e sangue e feridas. Música lenta, por favor. Fechem os olhos, senhores. Um momento. Um pequeno problema com esses corpúsculos brancos. Silêncio, todos.
Ele olhou de soslaio para cima e soltou um longo e lento assobio de chamada, depois fez por um momento uma pausa em atenção enlevada, com seus dentes iguais e brancos brilhando aqui e ali pontilhados de ouro. Crisóstomo. Dois fortes assobios estridentes responderam através da calma.
- Obrigado, meu velho - gritou vivamente. - Isto é o bastante. Desligue a corrente, está bem?
Saltou fora da plataforma de tiro e olhou seriamente para o seu observador, juntando em volta das pernas as dobras soltas de seu penhoar. A cara rechonchuda e sombria e a queixada oval e taciturna lembravam um prelado, patrono das artes na idade média. Um sorriso agradável desabrochou em seus lábios.
- A ironia das coisas! - disse ele alegremente. - Seu nome absurdo, um grego antigo!
Ele apontou com o dedo num gesto amigável e se encaminhou para o parapeito rindo consigo mesmo. Stephen Dedalus se aproximou, acompanhou-o e a meio caminho cansado se sentou na beira da plataforma de tiro, observando-o enquanto ele apoiava o espelho no parapeito, molhava o pincel na tigela e passava a espuma na face e no pescoço.
A voz alegre de Buck Mulligan prosseguia.
- Meu nome também é absurdo: Malachi Mulligan, dois dátilos. Mas soa helênico, não soa? Saltitante e radioso como o próprio cervo. Nós precisamos ir a Atenas. Você vem se eu conseguir que a tia me dê vinte libras?
Ele pôs o pincel de lado e, rindo com prazer, gritou:
- Será que ele vem? O jesuíta subnutrido!
Parando, ele começou a fazer a barba com cuidado.
- Diga-me, Mulligan - falou Stephen tranqüilamente.
- Sim, meu anjo?
- Quanto tempo Haines vai ficar nesta torre?
Buck Mulligan mostrou um rosto barbeado por cima do ombro direito.
- Meu Deus, ele não é horrível? - disse francamente. - Um saxão enfadonho. Ele não acha que você seja um cavalheiro. Meu Deus, esses malditos ingleses! Estourando de dinheiro e indigestão. Porque ele vem de Oxford. Você sabe, Dedalus, você tem o verdadeiro estilo de Oxford. Ele não consegue entender você. Ó, meu nome para você é o melhor: Kinch, a lâmina-de-faca.
Ele raspou cautelosamente o queixo.
- A noite inteira ele esbravejou em sonho a respeito de uma pantera negra - disse Stephen. - Onde é que está o estojo da arma dele?
- Um miserável lunático! - disse Mulligan. - Você ficou apavorado?
- Fiquei - Stephen disse energicamente e com um medo crescente. - Aqui no escuro com um homem que eu não conheço esbravejando e ameaçando aos gemidos atirar numa pantera negra. Você salvou homens de afogamento. Porém eu não sou um herói. Se ele ficar aqui eu estou fora.
Buck Mulligan franziu a testa ao olhar para a espuma em sua navalha. Ele saltou de seu poleiro e começou a dar apressadamente uma busca nos bolsos de sua calça.
- Droga! - bradou guturalmente.
Ele veio para a plataforma de tiro e, enfiando a mão no bolso superior de Stephen, disse:
- Faça-nos empréstimo de seu traponasal para limpar minha navalha.
Stephen suportou que ele puxasse para fora e exibisse erguido por uma das pontas um lenço amarrotado e sujo. Buck Mulligan limpou a lâmina da navalha cuidadosamente. Em seguida, lançando um olhar por cima do lenço, disse:
- O traponasal do bardo! Uma nova cor artística para os nossos poetas irlandeses: verdemeleca. A gente quase pode sentir o gosto, não é?
Ele subiu no parapeito novamente e lançou um olhar à volta por sobre a baía de Dublin, com seu cabelo louro de carvalhopálido ligeiramente alvoroçado.
- Ó Deus! - disse tranqüilamente. - Não é que o mar é aquilo que Algy chama de uma grande e doce mãe? O mar verdemeleca. O mar escrotocompressor. Epi oinopa ponton. Ah, Dedalus, os gregos! Eu preciso lhe ensinar. Você precisa os ler no original. Thalatta! Thalatta! Ele é a nossa grande e doce mãe. Venha ver.
Stephen se levantou e se encaminhou para o parapeito. Apoiando-se nele olhou para a água embaixo e para o barco-correio desafogando a entrada da enseada de Kingstown.
- Nossa mãe toda-poderosa! - disse Mulligan.
Ele voltou abruptamente do mar para o rosto de Stephen seus olhos cinzentos inquisitivos.
- A tia acha que você matou a sua mãe - disse ele. - É por isso que ela não quer me deixar ter nada a ver com você.
- Alguém a matou - disse Stephen sombriamente.
- Que droga, Kinch, você podia ter se ajoelhado quando sua mãe agonizante pediu - disse Buck Mulligan. - Eu sou hiperbóreo tanto quanto você. Mas pensar em sua mãe rogando no seu último suspiro que você se ajoelhasse e rezasse por ela. E você recusou. Existe alguma coisa sinistra em você...
Ele se interrompeu e passou espuma de novo ligeiramente na face. Um sorriso tolerante crispou seus lábios.
- Mas um mímico encantador! - murmurou consigo mesmo. - Kinch, o mais encantador de todos os mímicos!
Seriamente e em silêncio ele fez a barba com tranqüilidade e cuidado.
Stephen, com o cotovelo repousando no granito pontudo, encostou a palma abaixo da sobrancelha e olhou para a extremidade da manga de seu casaco preto lustroso que começava a puir. Uma dor, que ainda não era a dor do amor, agitou seu coração. Silenciosamente, em sonho, ela viera até ele após a sua morte, seu corpo gasto dentro de largas roupas tumulares marrons, exalando um odor de cera e pau-rosa, seu sopro, que se curvara sobre ele, mudo, reprovador, um fraco odor de cinzas molhadas. Através do punho puído ele viu o mar saudado como uma grande e doce mãe pela voz bem alimentada ao seu lado. A orla da baía e o horizonte continham uma massa líquida verde opaca. Uma tigela de porcelana ficara ao lado do leito de morte dela contendo a bile que parecia uma lesma verde arrancada de seu fígado apodrecido em seus ataques de vômito e de altos gemidos.
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