domingo, julho 24, 2005

quase parentesco

"a cabeça de vaca da minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior
rói-lhe o bicho das contas fímbria da orelha
rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor

repousa em paz, raposa velha, que da toca
fareja galinhas e mais galinhas
já não mija, mas cheira
já não vive mais ousa
ser a santa que não foi, não ser o estrume que é

a cabeça de vaca da minha ria refoga
nas lágrimas burguesas da família enlutada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca cebolas uma filha solteirona frustada

a cabeça de vaca da minha tia meneia
o sim-sim nao-não dos outros semi-vivos
na família a razão de se morre de tédio
e a exalação dos suspiros cativos

se não fosse o desgoto, se não fosse a gordura
o retrato na sala, o buraco no ventre
se houvese força tinha feito escritura
mas nem sequer houve tempo para o ouro dos dentes

minha tia mastiga, minha tia castiga
na saleta do inferno a alma dos criados
" não limpaste o pé, meu túmulo tem urtigas,
atrasaste o jantar dos condenados "

a cabeça de vaca da minha tia que não digo o nome
coze em fogo brando para passar à história
dissolve-se na boca, resolve-se na fome
do senhor que a devora em sua santa glória

Um comentário:

Anônimo disse...

Falta dizer que este poema é de José Carlos Ary dos Santos um pouco mal alterado.