quarta-feira, novembro 15, 2006

rachando lenha

Algumas pessoas não compreendem que falar e escrever têm regras distintas.

“Leio Machado de Assis com um dicionário do lado”, dizia Dona Gecy Durski, minha professora de português. Foi uma das boas lições que ela me deu. Manusear um dicionário é abrir a caixa de ferramentas e descobrir as grandes possibilidades para a construção de um texto.

Quando fiz minha primeira redação no curso preparatório para vestibular, recebi um 3 redondo — a prova valia 10 — e um recado do professor: “Simplifique. Use palavras comuns. Lembre-se que o revisor da redação pode desconhecer algumas dessas suas jóias. Achando-se ignorante, pode querer vingar-se... ”.

Estávamos falando de vestibular, aquela terra de ninguém, onde chora menos quem pode mais, e a tática do mestre funcionou. Caí no chão duro, consciente de que eu não era um grande escritor.

Com o passar dos anos percebi que o defeito de alguns autores é fazer uma salada de palavras difíceis, sem qualquer compromisso com a clareza, e muito menos com o conteúdo. Quanto a Machado e outros instrumentistas de pena afiada, estão autorizados pelos deuses a lançar mão de toda a gama de lexemas — tirei este do dicionário — para fazer crescer, florescer e frutificar sua literatura. Afinal, eles treinaram arduamente esse artesanato da escrita.

Algumas pessoas não compreendem que falar e escrever têm regras distintas. Seguidamente vemos professores tentando, talvez por obrigação profissional, falar como se escreve, e é triste. Quando um autor se põe a utilizar palavra lustrosa em texto fosco, é ainda pior.

Há anos decidi-me pelas palavras comuns, na escrita. Se produzo algum efeito especial, é na articulação entre as partes, como traços que se juntam a desenhar a alma daquele instante. Na fala, sou absolutamente vulgar. Pessoas que me conhecem somente pelos textos decepcionam-se quando nos encontramos pessoalmente. Esbanjo gírias e recuso-me a aplicar o “r” em finais de verbos no infinitivo.

Certa ocasião, funcionário de uma instituição pública, fui escolhido pelos colegas a levar uma pauta de reivindicações ao governador Jaime Lerdo. Assim que cheguei frente ao rei, apertei-lhe a mão, entreguei o documento e disparei: “Taí, seu Jaime, aí dentro deste pacote tem uma porção de pedidos do pessoal aqui da faculdade. Vê se dá uma aumentadinha no salário da galera porque a coisa ta braba, falou?”. Meus colegas funcionários acharam o máximo. Mas vários professores em fase de mestrado ou doutorado ficaram horrorizados.

Uma história digna que se produza, seja num romance, um conto, uma poesia de duas ou três linhas, tem a alma repleta, transbordante do sangue da humanidade. Ou um elogio das maravilhas mais deslumbrantes, como um prato requintado servido a um ansioso paladar.

Muitos sucessos tidos como jóias literárias serão consumidos pelos modismos do futuro. Resistirão à ferrugem dos tempos apenas as obras forjadas ao fogo das paixões, ou do humor insubmisso.

Tenho visto muitos livros com alto padrão de qualidade, capa dura, miolo em papel couché costurado, verniz e ouro na sobrecapa — orçamento: em torno de R$ 50 mil para uma tiragem de mil exemplares — pagos com Lei de Incentivo Cultural, isto é, patrocinados pelo cidadão trabalhador brasileiro. Os textos, diminutos, repletos de palavras bonitas que dizem quase nada, ladeiam fotografias de pinturas de meia página. No final, imagens de vernissages, com todas as glórias da refinada sociedade tupiniquim. Os artistas que têm alma de artista entram em colapso quando vêem essas coisas.

Se você tem alma de escritor, não se entregue. A vida é una, em suas manifestações mais dóceis e nas mais aberrantes. Se você está em dúvida se é, ou não, um escritor, veja como se abalam as convicções sempre que os seus originais doloridos e puros juntam pó enquanto as livrarias expõem uma nova dúzia de bem-aventurados vendedores de livros norte-americanos. Se nos anos de ostracismo o amor não se afeta, saiba, você é das luzes, nada apagará suas emanações. Escreva todo dia ao menos uma frase para salvar o mundo, ainda que muitos o tomem por ridículo. Talvez a humanidade continue em perigo, mas também é possível que numa manhã ela acorde radiante e iluminada, pelas suas palavras, ou não.

um texto a Machado, do chico gil, para a carta capital.
(o pior de tudo é ver que isso acontece - a empolação e a falta de objetividade - com os redatores de propaganda, mesmo em peças de pouco texto ou texto quase nenhum, cujos trabalhos raramente lembram os bons copys que construiram impérios, ou não os deixaram cair. pior ainda os que querem fazer da propaganda literatura ou seria piorissimamente o vice-versa?)

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