sábado, fevereiro 11, 2006

as putas, sabe o escritor, é que sabem das coisas

não é o melhor libro de garcia marquez, dizem, mas memória de minhas putas tristes, record, do gabriel, vale pela página em que o velho dialoga com a puta jovem após zelar por seu sono passagens inteiras. veja o trecho abaixo na resenha de paulo salles
escrita inexorável de um homem rondando os noventa anos como a morte lhe ronda na contra-dança ?

"A narrativa acompanha as reminiscências de um homem irremediavelmente solitário que, no aniversário de seus 90 anos, decide se dar de presente uma noite de amor com uma virgem. Jornalista ordinário, crítico de música de estilo antiquado e amante da atmosfera mundana dos prostíbulos, o personagem se insere no panteão de tipos sorumbáticos que habitam diversos romances de Márquez, sendo o principal deles Florentino Ariza, de O amor nos tempos do cólera, romance com o qual Memória de minhas putas tristes dialoga constantemente. Ambos empreendem um olhar delicado e afetivo sobre os labirintos da velhice. É quando o sexo se torna muitas vezes um fardo, e mesmo assim merece ser desfrutado. Quando a vida é feita de lembranças e se despe de sonhos.

Após entrar em contato com uma velha cafetina, Rosa Cabarcas, o velho consegue sua virgem. Mas a relação entre ambos é apenas de contemplação. A garota, nua, embrenha-se no breu do sono, e ele vela seus sonhos e pesadelos no recesso da alcova. São noites e noites observando os pés, o colo, os seios de adolescente de Degaldina. Até que, pela primeira vez em nove décadas de uma existência oca, apaixona-se inapelavelmente. Através dessa história singela e por vezes melancólica, Márquez faz uma ode ao ocaso.

Um trecho, já ao final do livro, é particularmente tocante: "Não resisti mais. Ela sentiu, viu meus olhos úmidos de lágrimas, e só então deve ter descoberto que eu já não era o que fui e sustentei seu olhar com uma coragem da qual nunca me achei capaz. É que estou ficando velho, disse a ela. Já ficamos, suspirou ela. Acontece que a gente não sente por dentro, mas de fora todo mundo vê". Impossível não vislumbrar, nos devaneios do nonagenário, pensamentos do próprio García Márquez, já às voltas com a proximidade da extinção.


Memória de minhas putas tristes poderia ser comparado a O velho e o mar, de Ernest Hemingway. Ambos são novelas escritas na maturidade, curtas e repletas de simbolismos. Não se ombreiam às obras-primas de seus respectivos autores, e de certa forma refletem suas obsessões. A luta do pescador Santiago contra o marlim gigante era uma metáfora da batalha - inglória e inútil - travada pelo próprio Hemingway contra a decadência física e a inspiração que se esvaía.

A obra de Márquez também medita sobre a derrocada do corpo, mas, ao contrário de Hemingway, o colombiano constrói uma parábola essencialmente otimista sobre o prazer de sobreviver a si mesmo. Como afirma, no parágrafo final, o velho jornalista: "Era enfim a vida real, com meu coração a salvo, e condenado a morrer de bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois dos meus cem anos".

Nenhum comentário: