A grande crise da televisão brasileira não é a de criatividade. Vai muito além do que isso. A crise é de compreensão da natureza do meio, de utilização de seus recursos narrativos, de impregnação de inteligência criativa ao discurso. Fernando Barbosa Lima, que morreu na madrugada de sexta para sábado (5-6/9/2008), foi um dos últimos grandes criadores da televisão brasileira. Em dezenas de programas que concebeu, colocou o veículo num patamar intelectual que conferia à própria televisão a auto-estima que qualquer forma de expressão necessita para ser levada a sério. Para Fernando, a TV era um veículo maior. Na sua vida, ele se encarregou de demonstrar isso. Fernando gostava de dizer que trouxe o jornalista à televisão. Ele se referia ao Jornal de Vanguarda, até hoje a mais contundente experiência de telejornal diário que conheci. Lá estavam Borjalo, Sérgio Porto, Newton Carlos, Fernando Garcia, Luis Jatobá e outros. Fernando fechava o jornal com a roda da vida de Fellini Oito e Meio, a música de Nino Rota e tudo, mas os protagonistas eram outros. Era a classe política brasileira, a classe artística, os intelectuais. Fernando entendia a roda felliniana tão bem quanto sabia quem criava os fantasmas do nosso dia-a-dia. E dizia isso na televisão, o que era impensável num momento em que o meio era ainda mais oficialista do que é hoje. Impermeável à burrice Seu grande segredo era simples e ao mesmo tempo ousado. Fernando acreditava que, do outro lado da câmera, não havia simplesmente uma massa de descerebrados; havia seres humanos dotados de inteligência. Era para eles que ele falava. Duvido que tenha se arrependido. Mas no Brasil, pelo menos, nunca vi ninguém pensar assim, muito menos um produtor de televisão, menos ainda um executivo de emissoras. A televisão trata seu público como débil mental. O público imagina que a televisão é quem seja débil mental e, para não contrariá-la, comporta-se como tal. Fausto Wolff, que morreu no mesmo dia que Barbosa Lima, dizia isso sobre as crianças e seus pais. Os pais, dizia Fausto, tratam os seus filhos como idiotas, fazem bilu-bilu e tudo o mais. As crianças pensam, então: "Coitado daquele cara. É um idiota. Vou me fingir de idiota para que ele não se decepcione". E era assim que, induzida pelos adultos, a criança se transformava numa perfeita idiota. Na TV, Fernando ousava, experimentava, cercava-se de grandes cabeças. Não buscava, como é a praxe na televisão aberta, o mínimo denominador comum para atingir a massa ignara, mas saía atrás do momento mágico em que até as grandes massas sentem-se atraídas pelo que é bom. Fez boa televisão, televisão inteligente, televisão criativa. Fez uma televisão impermeável à burrice – e não me lembro de mais três ou quatro pessoas a quem essa afirmação se aplique. Adjetivos excludentes Quando ouço dizer que a televisão brasileira contemporânea é muito boa, minha vontade é tirar do bolso um DVD com os programas que Fernando criou. Alguns estão disponíveis, como parte da autobiografia que lançou pouco antes de morrer, Nossas lentes são seus olhos. Publicitário, não deixou assim mesmo que a visão mercadológica da TV fosse hegemônica sobre o ato de criação. Fernando gostava de falar de televisão, sobre o que era possível criar naquele universo que ele sabia maravilhoso. Criou como poucos. Um segundo da fumaça desconcertante do Preto no Branco vale mais que todos os softwares de computação eletrônica que existem em cada emissora do país. Valeu-se do fato de ser, ele mesmo, uma pessoa refinada. Em casa, teve de quem aprender. Fernando Barbosa Lima lançou a televisão brasileira num patamar que nem os neo-yuppies conseguirão destruir. Nunca usou termos como "reposicionamento", "target" ou "recall". Mas fez televisão de primeira qualidade, coisa que os que estão aí construindo o patético lixo eletrônico que invade nossas casas nunca sequer souberam que um dia existiu. Sua televisão era politizada, renovadora, atraente. São adjetivos que hoje soam como excludentes ao meio. Com Fernando Barbosa Lima vai-se grande parte do que havia de melhor no meio televisão. Pobre do meio, pobre dos otários que têm certeza de que a televisão é o repouso dos medíocres. (quando a inteligência rimava com televisão, do nélson hoineff, no observatório) |
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