Está virando mania falar da crise. E manias sao fenômenos retroalimentados - quanto mais a gente coça, mais coça. Quanto mais a gente come crise, mais ela nos come. Mas é irresistível e útil. Raramente uma crise foi tão fácil de explicar. As justificativas são irritantemente as mesmas e simples - excesso de liberalismo, crença na cura espontânea dos excessos, falta de transparência. E todo mundo tem culpa no cartório. Pois falemos um pouco da nossa crise - na propaganda.
A internet é a plataforma do liberalismo absoluto, beirando a libertinagem. É algo geneticamente constituído para contornar e oferecer soluções rápidas e simples para subverter as estruturas de poder. E, ainda que organismos arcaicos (certos governos, instituições e empresas) tentem desesperadamente construir ferramentas de controle, elas são sempre humilhadas pela criatividade ou sucumbem às virtudes incontornáveis que a internet tem também.
Mas a internet não é nem boba, nem nada. Ela crê piamente na cura espontânea. Isso significa que a liberdade absoluta de expressão e ação, no limite, separa o joio do trigo, descarta o que não presta pelo sufrágio popular e conserva o que a unanimidade elege. Sua doutrina, “Se o povo quer, Deus quer”, é inequívoca. O laxismo corrige o achismo.
Poderíamos pensar, no entanto, que, por detrás das intricadas teias da web, potencializadas por nossa infinita sede de aparecer e apoderar-se, somos todos os agentes trapaceiros e malandros que habitam esse templo obscuro. Mas a internet vai na contramão desse vício sedutor. Ao contrário, ela é a mais transparente das nossas criaçoes. O anonimato sucumbe e denúncias ganham proporções de avalanche num piscar de olhos.
A propaganda é, e sempre foi, uma espécie de ponte que conecta os dois lados do nosso sistema. De um lado, empresas que fazem coisas; de outro, pessoas que precisam dessas mesmas coisas. Para diferenciar umas coisas e outras e todas elas, criamos marcas que sao uma espécie de representação das próprias. Essas marcas são os atores da propaganda.
Se as marcas simbolizam os produtos, elas também tentam sensibilizar as pessoas, valendo-se da exploração de suas aspirações, sonhos, esperanças, complexos, frustrações. É aí que a marca seduz e estimula a mágica química do sistema - faz-nos escolher e comprar. Essa é a alma do negócio que ela é.
Mas na ponte que conecta consumidores e empresas, existe um pedágio, pago pelos primeiros aos segundos, e esse pedágio se chama “marca”.
Essa taxação será tão mais importante e significativa quanto melhor for precisamente a propaganda que a veicular. Para ser melhor, a propaganda se utiliza de muitos recursos e, embora o debate aqui seja extenso, convenciona-se, quase unanimemente, que a boa propaganda é aquela capaz de suscitar-lhe emoções genuínas. Propaganda boa é aquela que diverte ao invés de aborrecer, que questiona ao invés de amortecer. Propaganda boa é aquela que diz a que veio, com clareza.
Quando a propaganda é boa, portanto, é como se o consumidor estivesse pagando um extra pela capacidade que ela teve de emocioná-lo.
A propaganda torna-se assim um 'plus à gagner' (mais a ganhar) do produto e do consumidor.
Se a boa propaganda é um 'plus à gagner' de mão dupla, no entanto, quando a propaganda é ruim, é como se o consumidor estivesse sendo potencial e inconscientemente extorquido. O que seria uma propaganda ruim, portanto, nessa análise? Propaganda ruim é aquela que espertamente mascara o 'plus'.
As formas mais clássicas são o entorpecimento e a insistência. Outras sao requentar fórmulas. Ou ainda apelar para reputaçoes alheias para referendar escolhas. Propaganda ruim pode ser simplesmente também aquela que apela para recursos pretensamente técnicos e demonstrativos para enaltecer vantagens racionais (precisamente funçao de outros recursos de comunicaçao como a própria internet).
A propaganda ruim cobra o pedágio mas não garante a viagem. A internet, como vimos, é a mais poderosa das armas para escancarar opiniões, potencializá-las. Está também se tornando a ferramenta por excelência de escolha por produtos. A internet é a plataforma decisória da pré-compra. E é lá também que o extorquido inconsciente abre os olhos ou pode abri-los.
É como se o pedágio fosse se tornando mais claro, mais transparente. Esta crise é nossa. A crise da propaganda ruim, safada, opaca.
(fernand alphen, para o ônibus azul, fazendo valer o pagamento da passagem)
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