sexta-feira, março 27, 2015

das duas uma: na publicidade brasileira mulher é pra foder ou para que se fodam*

A série de desastres produzidos pela publicidade brasileira inclui, entre outras coisas, objetificação da figura feminina, culpabilização da vítima e culto ao padrão branco de beleza. Entenda em que pontos se equivocaram as campanhas selecionadas 

Palmolive – “Longo Sedutor”
A propaganda voltada ao cuidado com os cabelos reforça a mensagem de que as cantadas seriam profundamente desejadas pelas mulheres. Fazendo um trocadilho com o ato de cantar uma música, o vídeo mostra uma mulher sendo abordada, incluindo até mesmo toques físicos, por causa de seu belo cabelo. O tema das cantadas tem ganhado força no Brasil, evidenciando a prática como algo invasivo e violento, que constrange e amedronta mulheres. A Palmolive, no entanto, prefere não acompanhar o avanço social.
TRESemmé – “Selagem Capilar”
Com a frase “meu cabelo liso ressalta o melhor de mim”, a marca de produtos capilares exibe uma modelo negra como símbolo de sua propaganda. A mensagem é clara: o melhor que uma mulher negra pode possuir em si é algo que se faz notar apenas com a aproximação ao padrão de beleza branco. É verdade que algumas pessoas de pele escura têm os cabelos naturalmente lisos, mas basta um pouco de consciência e responsabilidade social para perceber, preferencialmente antes de aprovar a peça publicitária, que vivemos uma epidemia de alisamentos e que o cabelo crespo ainda é alvo dos mais agressivos tipos de rejeição e preconceito.
(Reprodução)
(Reprodução)
Mr. Músculo
Para vender produtos de limpeza, a marca recorre à antiquíssima ideia de que os afazeres domésticos são tarefas femininas. Em suas peças publicitárias, são exibidas mulheres cuidando da limpeza, preocupando-se com a manutenção da casa e caindo de exaustão após uma faxina. Para piorar, a empresa chegou a publicar uma peça afirmando que a mulher só poderá buscar seus objetivos e sonhos depois de limpar a casa.
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(Reprodução/Twitter)
(Reprodução/Twitter)
(Reprodução/Twitter)
Posto Ipiranga
Na campanha lançada neste início de 2015, a rede de postos de combustível expõe uma imagem completamente estereotipada e infiel dos povos indígenas brasileiros. Primeiro, porque os retrata com características claramente trazidas da América do Norte – exemplo é o cocar dos índios apaches, nativos dos EUA, que nada têm a ver com os adereços utilizados por nossas comunidades tradicionais. Além disso, ridiculariza os indígenas, utilizando-se do velho e preconceituoso clichê  de que são burros e menos civilizados do que o branco ocidental.
Skol
O anúncio da marca de cervejas trouxe à tona os aspectos mais machistas e violentos do Carnaval. Ignorou, sobretudo, a noção de consentimento, algo que ocorre corriqueiramente em nosso país, mas é levado às últimas consequências no feriado em questão. A peça dá a entender que a negação da mulher às investidas sexuais alheias pouco importa, principalmente se tiver consumido bebidas alcoólicas – como a divulgada pela propaganda – ou se estiver vestida com roupas curtas, encaradas por si só como “convite” e “permissão” à invasão de seu corpo.
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(Reprodução)
Ministério da Justiça – “Bebeu, Perdeu”
Em campanha para combater o consumo de álcool por parte de crianças e adolescentes, o Ministério da Justiça acabou produzindo uma peça extremamente machista, que culpabiliza a mulher vítima de atos praticados sem o seu consenso, desde um estupro à divulgação de vídeos íntimos – o famoso revenge porn. Dessa forma, insinua, ainda, que as mulheres que bebem, por exemplo, pedem para ser abusadas e, por isso, não têm direito a nenhum tipo proteção. Depois da desastrosa repercussão da propaganda nas redes, o órgão a retirou de circulação e pediu desculpas em sua página no Facebook.
(Divulgação)
(Divulgação)
Itaipava – “Verão”
Mais um anúncio machista que, acima de tudo, objetifica e hiperssexualiza a figura da mulher. Ao fazer a comparação entre o volume de cerveja contido nos recipientes comercializados pela marca e o silicone dos seios da modelo, a peça a coloca à disposição dos homens, que podem, teoricamente, escolher a “embalagem” de sua preferência. Além disso, ainda exalta o padrão de beleza branco e esbelto, que dificilmente deixa espaço a quem não corresponde a ele, como as mulheres gordas e negras (estas, quando atingem visibilidade, aparecem de maneira ainda mais sexualizada).
(Divulgação)
(Divulgação)
Fast Shop – Semana da Mulher
Uma das mais catastróficas peças produzidas para “comemorar” o último Dia Internacional da Mulher, reforça o estereótipo sexista de que as tarefas relacionadas à vida doméstica são responsabilidades exclusivamente femininas. Como se não bastasse, sugere a compra de uma máquina de lavar para que a mulher, vista sempre como uma dona de casa, “tenha mais tempo livre”. A loja responsável por tal infelicidade parece ter esquecido que a “jornada dupla” socialmente imposta às mulheres trabalhadoras, é um fardo enorme que lhes toma tempo e as impede, muitas vezes, de manter maior foco em questões profissionais, como podem fazer os homens sem nenhum impeditivo.
(Divulgação)
(Divulgação)
Always – 0% Vazamentos
Em um dos maiores desastres da publicidade brasileira, a marca de absorventes tentou engatar uma campanha de conscientização sobre fotos e vídeos íntimos publicados sem o consentimento das mulheres. O equívoco foi imenso: até mesmo a ONG Safernet, que deveria ser responsável pelo conteúdo informativo e legal, reforçou a ideia de que as mulheres são culpadas pelas fotos vazadas, indicando que não tirem fotos íntimas caso não queiram aparecer na internet. Em nenhum momento a propaganda falou sobre a responsabilidade dos homens que divulgam o conteúdo sem permissão e de forma criminosa. Para completar o desastre, a Always exibiu a modelo Sabrina Sato como atrativo sexual para chamar atenção da audiência durante a campanha.
(Reprodução)
(Reprodução)
Risqué – “Homens que amamos”
Com o objetivo de “homenagear” os homens por comportamentos sexistas, a marca de esmaltes achou que seria uma boa ideia reforçar o clichê do “homem que ajuda” ao lançar sua nova coleção – porque para um homem basta cozinhar o jantar ou lavar alguns pratos sujos de vez em quando para conquistar o amor das mulheres. Entre outras máximas sexistas, a marca de esmaltes não promove nenhum conteúdo positivo para o público feminino, além de propagar uma heteronormatividade equivocada, já que muitas mulheres nem sequer se sentem sexualmente atraídas por homens.
(Divulgação)
(Divulgação)(Divulgação)

(por anna beatriz anjos e jarid arraes no portal fórum)
* titulo do post made cemgraus

quarta-feira, março 25, 2015

sim, o maléfico anda fazendo escola

gladiadores do altar da igreja universal. 
qualquer semelhança com a ideologia nazi-fascista-imperialista-midiática 
seria mera coincidência?

























 “Quando se estuda jornalismo na faculdade é para se formar redatores iguais. O que importa é o marketing, que sejam lidos”, disse. A formação seria então mais comercial do que profissional. O resultado, para Savio, é que a imprensa trata de eventos, não de processos. Assim, produz-se coberturas sem contextualização e que não dão conta da complexidade do mundo(Roberto Savio, presidente da agência italiana Inter Press Service).


misterwalk comenta: e  o que dizer então de publicitários formados nestas formas de gelo destas mesmas faculdades? são estes que vão produzir diferenciação, rupturas, disrupturas na comunicação de marketing de marcas? 

ah! conta outra. não me faça rir como aquela agência que diz ser diferenciada por instinto e em suas contas apresenta um repeteco de perfil que desmente toda e qualquer diferenciação anunciada ou melhor, neste caso, renunciada. 

o mal da maioria esmagadora das agências é que elas querem se diferenciar pelo que é produzido por seus intestinos( e chama isto de genial) e não pelo cérebro, corroborando a ideia, dominante na prática, da sustentabilidade do negócio baseado no fato sólido porém de resultados aquosos que merda dá dinheiro. então pra que mudar? diferenciação? apenas na tentativa do disfarçe o cheiro, onde nem nisso há diferenciação. é sempre a mesma cantilena do pensamento estratégico, de mais um termo em inglês, das pesquisas, do digital. bom você,se publicitário, minimamente ativo, conhece o repertório passivo como ninguém. 

ao fim e ao cabo, toda unificação é maléfica. mas o mal do mau é que até ele pode ser bem feito, o que no caso da formação publicitária atual não acontece. mas que causa tanto mal como mal maior seria se esta formação conseguisse formar algo mais que gladiadores de mais do mesmo.

p.s. se você acha que não, cito  o desastre de comunicação do governo ao produzir mais do mesmo sem a menor ideia do que seja timing, já que não havia ideia nenhuma em sua comunicação que não fosse repetição de outras cópias. nem precisou a oposição produzir material. o fogo amigo resolveu tudo de uma vez só. deve ser isso que se aprende na faculdade. como dar tiro no pé com metralhadora para demonstrar poder de fogo(leia-se criatividade;efetividade).

sábado, março 21, 2015

e se tony ramos fosse um porco ?




eis a transparência( e confiança) que tony ramos embaça




A vasta maioria das embalagens e propagandas sobre a carne suína no Brasil omite qualquer informação sobre como estes produtos são originados. Enquanto muito se diz sobre a qualidade e sabor dos diferentes cortes, presuntos, bacons e linguiças, nada se fala sobre como os cerca de 36 milhões de porcos abatidos todos os anos são criados.

Por isso, o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal (FNPDA) preparou uma lista que revela fatos chocantes, mas reais, sobre como a maioria dos porcos são criados e tratados em sistemas industriais. Respire fundo e prepare-se para entender por que as indústrias da produção e do marketing estrategicamente fazem questão de esconder isso de você.

1. Leitões têm seus dentes cortados 
Com menos de sete dias de vida, leitões - fêmeas e machos - têm seus dentes cortados ou lixados. Na maioria das vezes, os animais gritam e agonizam de dor, pois esse procedimento é feito sem nenhum tipo de anestesia ou medicações que aliviem a dor e o estresse.
Os dentes dos leitões são inervados e estudos científicos já demonstraram que o corte pode causar dor aguda e sentimento de angústia no momento e nos minutos seguintes ao procedimento. O corte de dentes também pode causar dor e complicações mais duradouras, de até 120 dias após o corte - como aberturas de cavidades, fraturas, hemorragias, infiltrações e abscessos.
Essa prática cruel ainda impera no Brasil sob a desculpa de que ela é necessária para prevenir ferimentos nas mamas das porcas parideiras, embora evidências científicas provem que isso não é necessariamente verdade. Desde 2003, a prática de cortar ou lixar dentes de leitões de forma rotineira já foi proibida em todos os países da União Europeia.

2. Leitões têm suas caudas esmagadas ou cortadas
Também logo após nascerem, antes de completarem sete dias de vida, os leitões em sistemas industriais têm suas caudas esmagadas ou cortadas. Embora o procedimento seja inquestionavelmente estressante e doloroso para os animais, o uso de anestésicos e analgésicos é geralmente dispensado pelos produtores.
Porcos são animais extremamente inteligentes e ativos, que passam a maioria do seu tempo explorando o ambiente em que vivem. O corte de caudas é feito porque em sistemas de confinamento tradicional - que são predominantes no Brasil - eles vivem em baias de concreto superlotadas que não proveem nenhum tipo de enriquecimento ambiental. O estresse e o tédio gerados por esse sistema de produção os levam a explorar e morder as caudas dos companheiros de baia, o que às vezes também resulta em infecções graves e surtos de canibalismo.
Estudos científicos são vastos e claros: porcos criados em sistemas abertos, ou com uso de enriquecimento e espaço suficiente, não desenvolvem o comportamento anormal de morder caudas e assim a prática extremamente cruel de cortá-las ou esmagá-las não é "necessária". Assim como para o corte de dentes, a União Europeia também já proibiu o corte rotineiro de caudas.

3. Leitões são castrados sem anestesia
Como se não bastasse, também antes de atingir o sétimo dia de vida, os leitões machos têm seus sacos escrotais cortados e os testículos removidos, sem o uso de medicação para anestesiar ou aliviar a dor. Esse procedimento desumano é feito para evitar o odor forte dos hormônios masculinos na carne de animais abatidos.
No entanto, países como Dinamarca e Alemanha já usam analgésicos rotineiramente. Suíça e Holanda já abandonaram a prática totalmente, usando métodos alternativos, como abater animais mais jovens ou separar carcaças com odor forte. A União Europeia como um todo já está trabalhando para que a prática de castração sem anestesia seja abolida e negociações atuais com a indústria e o varejo indicam que isso pode acontecer já em 2018.

4. Porcas parideiras vivem em gaiolas minúsculas
De acordo com artigos da indústria, cerca de 99% das porcas usadas para parir leitões de engorda na produção industrial de carne suína do Brasil são confinadas por praticamente toda a vida em gaiolas de gestação e parição.
Essas gaiolas são tão pequenas que as porcas não podem sequer se virar dentro delas, ou dar mais do que um passo para frente ou para trás. A prática de confinar porcas em gaiolas por toda a vida é tão cruel que já foi proibida em todos os países da União Europeia, Canadá e Nova Zelândia - e associações de produtores na Austrália e África do Sul já se comprometeram a abandoná-la de forma gradual.
Porcos são um dos animais mais inteligentes do planeta, até mais do que os cães, e não é exagerado dizer que o sofrimento das porcas reprodutoras confinadas dessa forma é um dos piores dentre os animais criados para consumo.




No Brasil, a pressão do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal e outras ONGs de proteção animal já levou a BRF, maior produtora nacional e dona das marcas Sadia e Perdigão, a declarar que acabará com esse sistema de confinamento. Agora, nós estamos pedindo que a JBS, segunda maior produtora e dona da marca Seara, faça o mesmo. Se você se importa com a forma como os animais são tratados na produção de alimentos, clique aqui e assine a petição que pede que a JBS ouça essa demanda.

E não se esqueça: esse é apenas um primeiro passo para que a produção de carne suína se torne um pouco menos cruel. Dados todos os demais abusos que reportamos aqui, a decisão mais sensata é não consumir carne suína, recusando presuntos, bacons, salsichas e linguiças em embalagens pomposas promovidas por celebridades que nada dizem sobre como eles são produzidos.


(por elilzabeth mac gregor, diretora de educação do fórum nacional de proteção e defesa animal(FNPDA)

* legenda do blog


terça-feira, março 17, 2015

"propaganda nunca é vanguarda. nunca propôe o revolucionário. ela apenas segue o rastro da sociedade" *

Adolescente trans é nova garota-propaganda de marca de cosméticos
adolescente trans é nova garota-propaganda de marca de cosméticos 


Jazz Jennings, transsexual de 14 anos, será o novo rosto de uma 
marca famosa de produtos para cuidados com a pele; militante da 
causa, a garota tem um canal no Youtube em que fala sobre a transexualidade na infância e na adolescência e já tem um 
livro publicado 

Jazz Jennings já era famosa na rede. No ano passado, foi eleita 
pela revista Times como uma das adolescentes mais influentes 
de 2014 e, agora, sua influência deve ser exponencialmente 
ampliada uma vez que foi escolhida para ser a nova 
garota-propaganda da Clean &  Clear, uma famosa marca 
de cosméticos.

Jennings não é uma blogueira de moda e nem nada do tipo. 
A norte-americana de apenas 14 anos é transexual e há anos 
milita pela causa dos transgênero e promove debates entre crianças 
e adolescentes através dos vídeos que publica no seu canal do 
Youtube (com mais de 33 mil seguidores). Em transição desde os 
5 anos de idade, a jovem militante já tem um livro publicado, 
o “I Am Jazz”, que conta a sua história de vida e explica o que é 
ser trans na infância e na adolescência.

A escolha de Jazz para compor a nova campanha da Clean & Clear 
pode significar uma importante quebra de paradigmas em um mercado 
permeado por padrões de beleza pré-estabelecidos. Batizado de
 “See the real me” – em português, “Veja o meu eu real” – o projeto 
busca encorajar garotas, como Jennings, a valorizar suas verdadeiras identidades 
e a maneira pela qual julgam que devem ser reconhecidas.

“A campanha é ótima em ajudar garotas a encontrar coragem para se 

abrirem e serem elas mesmas, e eu realmente posso me identificar 
com isso”, contou a adolescente para o site PopSugar. 


* era o que diziam os mestres da nossa propaganda. e agora ? a johnson & johnson é exatamente aquela empresa que sempre foi tratada( e sua marca construída) com o perfil conservador da família classe média branca, esta mesma que vai as ruas pedindo por intervenção militar no pais.




**matéria da revistaforum.com.br
*** mais jazz em http://beleza.terra.com.br/,83d231eb7c22c410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html

sábado, março 14, 2015

na agência glamurosa boceta "capô de fusca"* ganha troféu calota. é no brasil? sim. mas oficialmente só na "geografia da áfrica" ?



troféu calota 2010
Publicitárias denunciam abusos de que são vítimas no trabalho e afirmam: os anúncios que indignam as mulheres nascem da cultura interna das próprias agências


“Não existem muitos casos de propagandas machistas no Brasil porque a publicidade brasileira é madura para perceber que a pior coisa que pode fazer é irritar o consumidor, seja ele mulher, homem ou criança. De qualquer forma, nós não temos uma declaração oficial a respeito desse assunto”. Essa foi a resposta da assessoria de imprensa do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), por telefone, à pergunta da Pública referente a algumas peças publicitárias lançadas no Carnaval e no Dia Internacional da Mulher, rechaçadas nas redes sociais por serem consideradas machistas – algumas inclusive retiradas de circulação. O Conar é um órgão de autorregulamentação das agências publicitárias, encarregado de receber denúncias de consumidores ou órgãos públicos e julgar se a propaganda deve ser tirada do ar e a agência eventualmente advertida. Das 18 denúncias de machismo em propaganda recebidas em 2014 (pesquisadas pela Pública no site do Conselho), 17 foram arquivadas, e apenas uma, da cerveja Conti, que dizia em sua página do Facebook “tenho medo de ir no bar pedir uma rodada e o garçom trazer minha ex” terminou com um pedido de suspensão e advertência da agência que realizou a campanha.


Outra campanha, do site de classificados bomnegócio.com, em que o Compadre Washington chamava uma mulher de “vem ordinária”, que havia recebido pedido de suspensão, foi posteriormente reavaliada e o processo arquivado. As justificativas das decisões geralmente são de que as propagandas não são machistas mas sim humorísticas, como esta de março de 2014, referente a um spot de rádio da Itaipava: “Uma consumidora paulistana entendeu haver preconceito machista em spot de rádio da cerveja Itaipava. A anunciante e sua agência alegam o caráter evidentemente humorístico da peça publicitária. O relator aceitou esse ponto de vista e recomendou o arquivamento, voto aceito por unanimidade”.


A visão do Conar parece ser compartilhada pela maioria das agências, criadoras das peças publicitárias. Chamada a dialogar sobre a campanha “Verão” em que uma mulher chamada Vera é impedida de passar por um homem na praia, ela tentando correr e ele barrando sua passagem com o slogan “não deixe o Verão passar” ou em uma que ela leva e traz cervejas para os homens só de biquíni enquanto eles olham para seu corpo e chamam “vem Verão, vai Verão” ou ainda uma terceira em que a moça aparece de biquíni com uma lata e uma garrafa de cerveja na mão com o slogan “faça sua escolha” com a indicação de 300, 350 ou 600 ml – estes em uma alusão ao silicone do seio da modelo, a agência preferiu se pronunciar apenas por e-mail de sua assessoria de imprensa. “A Y&R, agência que criou a campanha, respeita, bem como seu cliente, todas pessoas e em especial as mulheres. Em momento nenhum faz qualquer tipo de alusão para desmerecer ou agredir quem quer que seja e considera que o humor utilizado não tem tom de agressividade ou qualquer juízo de valor”.









Peça publicitária da campanha “Verão” da Itaipava / Reprodução



As entrevistas também foram negadas pela agência F/Nazca Saatchi &Saatchi, responsável pela campanha da Skol para o Carnaval que teve que mudar a campanha depois que seus cartazes de “Deixei o não em casa” foram pichados com a frase complementar “mas trouxe o nunca” por duas garotas de São Paulo, e pela Ajinomoto do Brasil, fabricante da Sopa Vono, que teve sua fanpage no Facebook invadida por reclamações por peças consideradas machistas e também teve de tirá-las do ar. Via assessoria de imprensa a F/Nazca Saatchi &Saatchi e a Ajinomoto disseram que lamentam o ocorrido, respeitam as mulheres, que o objetivo da peça era humorístico e que estão repensando suas estratégias.



De onde surge então o machismo das peças criadas pelas agências? Uma nova pista surgiu quando através de um pedido feito em um grupo fechado no Facebook, 15 mulheres de 20 a 40 anos, atuantes em áreas diversas da publicidade contaram à Pública como é o ambiente em que trabalham, dentro das agências. Os relatos, feitos sob anonimato pelo temor de perder o emprego, trazem casos de abuso, assédio e violência psicológica que viveram ou ainda vivem em suas carreiras. Trechos destes depoimentos estão destacados ao longo do texto.









A campanha de Vono que foi retirada do ar após reclamações na fanpage da marca









Anúncio da Skol e a intervenção de Mila Alves e Pri Ferrari. A foto teve mais de 8 mil curtidas no Facebook / Foto: Reprodução






“Antes de falarmos sobre publicidade machista, temos que falar sobre machismo na publicidade” argumenta a diretora de criação Thaís Fabris, idealizadora do projeto 65|10 que discute o papel da mulher na publicidade. “O ‘65’ vem do dado de uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão que aponta que 65% das mulheres brasileiras não se identificam com a publicidade e com a forma com que são retratadas pela publicidade. O número ‘10’ é de uma pesquisa que nós fizemos que mostrou que apenas 10% dos criativos dentro das agências brasileiras são mulheres. E é na criação que as campanhas são feitas”.





A diretora de criação e idealizadora do 65|10 Thais Fabris / Foto: Joseh Silva


A gerente de planejamento Carla Purcino concorda: “Quando a gente olha para a representatividade feminina na publicidade percebe que é praticamente 50%. Mas a distribuição dentro dos departamentos é muito diferente. Entende-se que a criação é um reduto masculino e que a mulher é mais adequada para o departamento de atendimento. E na maioria das vezes as mulheres do atendimento precisam ser bonitas para seduzir os clientes. Quem trabalha no meio sabe de agências que já demitiram times inteiros de funcionárias dessa área por não serem tão bonitas. ‘Contratem garotas bonitas’. E isso obviamente influencia sobremaneira o resultado final”. As duas disseram topar dar o nome por trabalharem hoje em agências mais inclusivas mas Carla lembra que chegou a ouvir de um diretor de uma agência onde trabalhou, após pedir a negociação de alguns direitos trabalhistas, que “se ela fosse homem ele meteria a mão na sua cara”. Por outro lado, por se colocar contra campanhas machistas nas agências onde trabalhou, ela já foi chamada a ajudar quando uma delas foi atacada nas redes sociais: “Me pediram ajuda para contornar a situação e a gente conseguiu resolver mas a coisa ainda acontece muito de fora pra dentro. Por pressão das pessoas as agências são obrigadas a resolver aquelas campanhas pontuais, a coisa não parte de dentro pra fora. É algo como ‘ai, que gente chata’. E as publicitárias ainda têm muito medo de se pronunciar. Elas normalmente se calam diante de piadas e colocações machistas para não perderem seus empregos. Tem uma grande agência que entrega, na festa de fim de ano, um prêmio chamado ‘calota de ouro’ referindo-se ao volume da vagina da mulher. E para sobreviver, elas acabam entrando no jogo”.




A gerente de planejamento Carla Purcino sempre se posicionou contra o machismo nas agências onde trabalhou / Foto: Joseh Silva

Veja aqui, imagens encontradas da festa da agência África em 2010.







“Trabalhei para marcas como Brahma, Skol e Budweiser, em que o machismo impera em qualquer peça de comunicação. Por mais que tentássemos abrandar ou mostrar um novo viés para a campanha, sempre éramos obrigadas a seguir os conceitos e o lugar-comum das marcas de cerveja em que a mulher é só mais um ser criado para satisfazer e obedecer o homem”. R.J. 32



Como diretora de criação, Thaís diz que, para fazer parte do grupo, muitas mulheres também acabam se masculinizando e até reproduzindo esse machismo. “É a maneira que encontram de preservar suas carreiras. Emudecem e não questionam ou entram na lógica e reproduzem”.




Propaganda do Ministério da Justiça também foi considerada machista e retirada do ar / Foto: Reprodução


Não existem dados oficiais sobre diferenças de salários e cargos na publicidade brasileira separados por gênero mas no geral, segundo o PNAD de 2013, mulheres recebiam cerca de 26,5% a menos que homens na mesma posição. E segundo a pesquisa “A mulher publicitária, preconceito e espaço profissional: estudo sobre a atuação de mulheres na área de criação em agências de comunicação em Curitiba” realizada em 2009, as mulheres correspondiam a menos de 20% nas áreas de criação. Em sua conclusão, o estudo aponta que muitas vezes as próprias mulheres contavam casos de discriminação sem entender como tal: “Percebe-se, assim, que a discriminação por parte do gênero masculino em relação ao feminino está tão enraizada na profissão, que acaba sendo acatada como uma manifestação sociocultural natural para as mulheres que trabalham dentro desses ambientes extremamente machistas. O discurso dos indivíduos que atuam na área, afirmando que existem mulheres que não servem para essa profissão por serem muito frágeis e fracas, é típico da construção hierárquica desigual da sociedade, que surge de seus tempos mais remotos.”


“Existe quase uma ordem natural de colocar as mulheres nas áreas de atendimento e gerenciamento de projeto do que em qualquer outra. existe uma série de piadas extremamente machistas e misóginas que ‘brincam’ com essa relação de mulher sempre virar atendimento”. F.B, 32





O anúncio da Always com Sabrina Sato que quer falar sobre vazamento menstrual e de imagens íntimas / Foto: Reprodução




Recomendações internacionais


A pesquisa “Representações das mulheres nas propagandas na TV” citada pela Thaís no começo da matéria, foi publicada em 2013 pelo Instituto Patrícia Galvão em parceria com o Data Popular. De acordo com os dados obtidos 84% dos entrevistados (homens e mulheres de todo o país) reconhecem que o corpo da mulher é usado para venda de produtos; 58% entendem que as propagandas na TV mostram a mulher como objeto sexual e – ao contrário do que acredita o Conar – 70% defendem a punição aos responsáveis por propagandas que mostram a mulher de modo ofensivo.



O Brasil é signatário da Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada em 1995 em Pequim, que determina: “incentivar a participação das mulheres na elaboração de diretrizes profissionais e códigos de conduta ou outros mecanismos apropriados de auto-regulação, para promover uma imagem equilibrada e não-estereotipada das mulheres na mídia; incentivar a criação de grupos de vigilância que possam monitorar os meios de comunicação e com eles realizar consultas, a fim de garantir que as necessidades e preocupações das mulheres estejam apropriadamente refletidas neles; promover uma imagem equilibrada e não-estereotipada da mulher nos meios de comunicação”.



Mas depois disso, o país já recebeu recomendações internacionais para que preste mais atenção à forma como retrata a mulher em suas propagandas. Em 2003, o relatório do comitê da Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher do qual o Brasil é signatário) afirmava: “O Comitê está preocupado com a evidente persistência de visões conservadoras e estereotipadas, comportamentos e imagens sobre o papel e responsabilidades de mulheres e homens, os quais reforçam um ‘status’ inferior das mulheres em todas as esferas da vida”. O relatório também recomendava que fossem criados programas para fomentar “a eliminação de estereótipos associados aos papéis tradicionais na família, no trabalho e na sociedade em geral”; e que os meios de comunicação (mídia) “fossem encorajados a projetar uma imagem positiva das mulheres e da igualdade no ‘status’ e nas responsabilidades de mulheres e homens, nas esferas pública e privada”.


“O diretor da agência onde eu trabalhava diversas vezes insinuava que eu (por ser lésbica) queria ficar com as meninas da equipe dele. Quando tinha Happy Hour da agência, ele me fazia perguntas constrangedoras a respeito da minha vida pessoal e ainda ficava perguntando o que eu gostaria de fazer com as meninas da equipe dele se elas me dessem bola. Isso tudo é pouco. Diversas vezes esse diretor insinuou coisas pra mim, fazia aqueles “elogios” desconfortáveis sobre roupa, corpo, olhar. Dizia que se eu conhecesse como ele era, eu não seria lésbica”. P.R, 29


De acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará – de 1994 – o Brasil tem cinco formas de violência contra a mulher tipificadas: sexual, física, moral, psicológica e econômica, explica Raquel Marques, diretora da ONG Artemis. “Na Venezuela, a mesma convenção deu origem a uma lei com 14 tipificações de violência contra a mulher, inclusive a midiática. Porque você transmitir mensagens que reforcem estereótipos ou reforcem violência causa dano coletivo e o dano coletivo vem da naturalização dos comportamentos. A publicidade, mais do que nenhum outro veículo traz expressões que se tornam até parte do nosso vocabulário, jingles, chavões, é muito poderoso”.


“Cansei de contar quantas infinitas vezes tive que dizer em voz alta para os diretores e supervisores o quanto eles estavam sendo machistas com determinadas peças. Às vezes, nem só nas campanhas mas também na conversinha de cozinha. Por eu sempre me posicionar firmemente, eles me chamavam de feminazi e sempre que podiam, faziam piadas machistas perto de mim para me ver reagir”. T.B. 29

Incentivo à violência contra a mulher


E essa violência pode ser incentivada pela publicidade como observa Thaís Fabris. “Nós publicitários temos que perceber a responsabilidade que temos enquanto criadores de comunicação em massa. Não é porque uma coisa funciona, que as pessoas compram, que a gente pode reforçar estes estereótipos muito perigosos. Quando a gente fala em ‘mulher objeto’, essa mulher está lá na outra ponta, com o homem se achando dono dela e acreditando que se aquele brinquedo não funcionar do jeito que ele quer, ele pode quebrar. E você tem uma mulher morrendo a cada 90 minutos no Brasil. A gente está sim reforçando e habilitando esse comportamento. A propaganda que pergunta ‘você está pronta pra ir pra praia?’ tem responsabilidade sobre a mulher que está morrendo em mesa de cirurgia ou morrendo de anorexia! A propaganda é feita pra isso, pra influenciar decisões e gerar a compra de produtos. Mas eu já disse e repito: antes de falar sobre publicidade machista, precisamos falar sobre machismo na publicidade. Porque ela existe, é real, acontece todos os dias dentro das agências”.


“Os meninos de uma agência na qual trabalhei encontraram com uma modelo famosa numa padaria e voltaram dizendo o quanto ela era gostosa, “rabuda” entre outros adjetivos horríveis. Senti-me enojada com os comentários, a ponto de não aguentar e rebater dizendo que mulher não era pedaço de carne. Isso foi suficiente para que todos se unissem contra mim e começassem então um massacre machista. Tudo o que eu falava era contestado. Todas as opiniões que eu dava eram minimizadas. Todos os meus trabalhos eram “meia-boca”. Acho que minha estadia nessa agência, em especial, foi uma das piores experiências profissionais que tive na minha vida”. C.C, 34





Mais um anúncio da Skol
A reação delas


Esse machismo dentro e fora da publicidade começa a criar novos nichos de atuação para as mulheres que se levantam contra ele. A Think Eva, é uma empresa criada pelas amigas Juliana de Faria (Jules), Maíra Liguori, e Nana Lima para prestar consultoria para marcas, agências, instituições, ONGs e órgãos públicos que queiram dialogar com as mulheres de um “jeito não ofensivo, mais efetivo e respeitoso”. Jules é a idealizadora do Think Olga, site sem fins lucrativos que promove o empoderamento feminino e responsável pela campanha Chega de Fiu Fiu. “As mulheres não estão mais deixando passar. Muito porque hoje elas mesmas falam de suas angústias e não dependem mais de uma revista feminina pra isso, por exemplo. A gente vive um momento de transição e existe gente querendo entender isso. Nós trabalhamos com essas pessoas” explica Jules. Apesar de ter sido lançada há pouco mais de um mês, a empresa já recebeu vários pedidos inclusive de palestras para funcionários de agências e revistas. O 65|10 da Thaís Fabris também oferece serviços de consultoria criativa para empresas e coaching profissional para criativos. Até uma cerveja feminista foi criada pelo grupo, que pretende com isso levar a discussão pra mesa do bar. “Pensamos em criar com a cerveja um ‘puxador de assunto’. Não é sobre supremacia feminina, é sobre igualdade entre gêneros” define Thaís.





Maíra Liguori, Nana Lima e Jules de Faria do Think Olga




(machismo é a regra da casa, por andrea dip, para http://apublica.org/)



* capô de fusca é a equivalência nordestina para a tal calota. mas se na região não se chega a institucionalização canalha da premiação, nos corredores a canalhice corre solta em eleições cotidianamente não menos desprezíveis .

sexta-feira, março 13, 2015

talvez porque a liberdade, sendo como água, afoga os peixinhos pelo excesso; ou mata de sede, peixões, por sua falta



A liberdade de ver os outros*

Um dos escritores mais admirados de sua geração, o americano David Foster Wallace se suicidou no mês passado(outubro de 2008) aos 46 anos, enforcando-se. Este texto foi tirado de seu discurso de paraninfo para formandos do Kenyon College, há três anos.
Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

- Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

- Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa forma, a frase soa como uma platitude - mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras "virtudes". Essa não é uma questão de virtude - trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de "ensinar os alunos como pensar" é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. "Aprender a pensar" significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um "boa noite, volte sempre" numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim - só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação "inferno do consumidor" não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como "não venerar". Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar - seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas - e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.
* publicado na revista piaui. e republicado aqui, via misterwalk,blogspot.com