Reescrever a história dominante de que a corrupção é o que marca a sociedade brasileira é o tema do novo livro do sociólogo Jessé Souza. Para o autor do recém-lançado “A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato”, obra que faz o contraponto à ideia dominante sobre o país, é a escravidão o que de fato marca a sociedade brasileira. Em artigo publicado na última sexta-feira (22) na Folha de S.Paulo, o autor volta ao tema.
O
sociólogo classifica como “ridícula se não fosse trágica” a abordagem
de
Raymundo Faoro de que “a história do Brasil é a história
da corrupção transplantada de Portugal
e aqui exercida pela elite do Estado”.
da corrupção transplantada de Portugal
e aqui exercida pela elite do Estado”.
“Faoro
imagina a semente da corrupção já no século 14, em Portugal,
quando não havia
nem sequer a concepção de soberania popular,
que é parteira da noção moderna de
bem público. É como ver um filme
sobre a Roma antiga cheio de cenas românticas
que foram inventadas
no século 18. Não obstante, o país inteiro acredita nessa
bobagem”.
Escravidão
Jessé
argumenta que os que apoiam essa interpretação dominante
“parecem não se dar
conta de que, em uma sociedade, cada indivíduo
é criado pela ação diária de
instituições concretas, como a família,
a escola, o mundo do trabalho”.
Segundo
o autor, a escravidão era a instituição que
influenciava todas as outras e se
mantém até os dias de hoje:
“A "ralé de novos escravos", mais de um
terço da população,
é explorada pela classe média e pela elite do mesmo modo
que o escravo doméstico: pelo uso de sua energia muscular
em funções indignas,
cansativas e com remuneração abjeta”.
Ele
explicou que o que ele define de maneira “provocativa” como ralé
é uma
continuação direta dos escravos. “Ela é hoje em grande parte
mestiça, mas não
deixa de ser destinatária da superexploração, do ódio
e do desprezo que se
reservavam ao escravo negro.
O assassinato indiscriminado de pobres é
atualmente
uma política pública informal de todas as grandes cidades
brasileiras”.
Na
opinião de Jessé, a elite econômica “é uma continuidade perfeita
da elite
escravagista” e continua condenando “os de baixo” à reprodução
de sua miséria
enquanto amplia o próprio “capital social e cultural”.
O
escritor complementa que “o recente golpe comprova, ainda predomina
o
"quero o meu agora", mesmo que a custo do futuro de todos”.
Ele
diferencia as elites de outros países do Brasil:
“Ficam com a melhor fatia do
bolo do presente, mas além disso
planejam o bolo do futuro. Por aqui, a elite dedica-se apenas ao
saque da população via juros ou à pilhagem das riquezas
naturais”.
Classe média: tropa de choue das elites
Se as
classes dominantes no alvorecer do século 20 mantinham a “postura
da violência
e do engodo” em relação aos trabalhadores, um novo desafio
se impôs com o
surgimento da classe média, diz Jessé. “O que estava em
jogo era a captura
intelectual e simbólica da classe média letrada pela elite
do dinheiro, para a
formação da aliança de classe dominante que marcaria
o Brasil dali em diante”.
O
autor destaca ainda a construção de “fábricas de opiniões”
para distribuir
informação e opinião. Nesse terreno está a grande
imprensa, as grandes
editoras, livrarias “para "convencer" seu
público na direção que os proprietários queriam, sob a máscara
da "liberdade de imprensa" e de
opinião”.
Jessé
completa o raciocínio afirmando no artigo: “A produção de conteúdo
é monopólio
de especialistas treinados: os intelectuais. A elite paulistana,
então,
constrói a USP, destinando-a a ser uma espécie de gigantesco
"think
tank" do liberalismo conservador brasileiro, de onde saem as duas
ideias
centrais dessa vertente: as noções de patrimonialismo e de populismo”.
Lava Jato
Estigmatizar
o Estado e a política sempre que se oponham ao interesse
das elites e mitigar a
importância da soberania popular são aspectos
citados por Jessé como
entranhados na classe média pelo aparato
midiático.
“Nesse esquema, a classe
média cooptada escandaliza-se apenas com
a corrupção política dos partidos
ligados às classes populares”, sustenta
o autor.
Segundo
ele, “as noções de patrimonialismo e de populismo,
distribuídas em pílulas pelo
veneno midiático diariamente,
são as ideias-guia que permitemà elite
arregimentar
a classe média como sua tropa de choque”.
“A
atual farsa da Lava Jato é apenas a máscara nova de um jogo velho
que completa
cem anos”, enfatizou Jessé. Na opinião dele,
o princípio da igualdade foi
vítima, com “protagonismo da Rede Globo”,
desse conluio. “Desqualificada
enquanto fim em si mesma, a demanda
pela igualdade se torna suspeita e
inadequada para expressar
o legítimo ressentimento e a raiva que os excluídos
sentem,
mas que agora não podem mais expressar politicamente”.
O
resultado desse cenário é a ascensão de discursos que vão na contra-mão
da
justiça social e de valores democráticos. “Jair Bolsonaro como ameaça real
é
filho do casamento entre a Lava Jato e a Rede Globo”.
Jessé
finaliza o artigo afirmando que “O pacto antipopular das
classes alta e média
não significa apenas manter o abandono
e a exclusão da maioria da população,
eternizando a herança
da escravidão. Significa também capturar o poder de
reflexão
autônoma da própria classe média
(assim como da sociedade em geral)
,
que é um recurso social escasso e literalmente impagável".
* originalmente publicado no portal vermelho(não recomendável para daltônicos políticos)
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