Tempos difíceis estes. Mas é curioso perceber o que é que isso quer dizer exatamente. E que implicações pode ter no nosso dia a dia, para além dos óbvios, como ter (muito) menos dinheiro e viver num clima de (muito) baixo astral. Não é fácil, porque nós ocidentais vemos o tempo como uma coisa neutra. Para nós, o tempo é quantitativo. Tem-se “muito tempo” ou “pouco tempo” para fazer um trabalho ou para viver e ficamo-nos por aí. O tempo é uma linha, que vem do passado e se prolonga no futuro, onde vamos pondo “toppings” (jantaradas, idas ao cinema, reuniões, paixões, impostos...). Sim, às vezes falamos de “quality time” se nos queremos referir ao (pouco) tempo que temos para passar com os nossos filhos, mas é uma exceção, uma nota de rodapé... mais um “topping”.
Um povo, no entanto, não pensava assim. E pode ajudar-nos a refletir sobre a forma como vivemos este tempo presente. Para os judeus da Bíblia havia dois tipos de tempo, que se opunham. Um tempo de abertura e expansão. Um tempo de contenção e recessão. Até aqui nada de novo. Nós também dizemos coisas destas. Mas as implicações desta conceção são originais. Já vai perceber porquê.
Para os judeus não havia maior calamidade do que tentar viver ao contrário do seu tempo. Rir em tempos de choro não era sinal de esperança, era ser louco. Curar em tempos de morte não era louvável, era um crime. Amar em tempos de ódio, uma inconsciência. Investir em tempos de recessão, um absurdo. Para eles, era o mesmo que plantar cereais no outono. Não se fazia. O tempo era, se quiser, um país com regras próprias que não podiam ser violadas. Uma espécie de “em Roma, sê romano” com roupagem hebraica. O tempo era psicológico e impunha-se à “psicologia” das pessoas que o viviam.
Saber em que tempo se vivia era, assim, um bem de 1ª necessidade. Para isso existiam os profetas, diz-nos Albert Nolan no magnífico “Jesus antes do Cristianismo”. Indivíduos com dons especiais capazes de ler os sinais de Deus, o Senhor do Tempo. As palavras dos profetas diziam às pessoas o “tipo de tempo” em que viviam, o que lhes permitia adequar o seu comportamento e o seu tom de voz ao momento vivido. São João Batista e Jesus Cristo – para citar os mais conhecidos – viveram no mesmo tempo “histórico”, mas pregaram tempos radicalmente diferentes. João anunciava tempos de abstinência e arrependimento. Jesus, que lhe sucedeu, mesmo se nascido apenas 2 anos depois dele, veio anunciar novos tempos de libertação e amor.
Tempos difíceis estes, para criativos. Não porque haja menos dinheiro (menos orçamento, mais imaginação), mas porque a criatividade genuína corre o risco de ser vista como uma anomalia.
No reino da criatividade ao serviço das marcas, a filosofia sempre foi de gerar pensamento novo, que crie insights novos, que deem origem a conceitos novos, que façam disparar ideias novas, que permitam pôr na rua (e na net) ações e campanhas novas, que deem vida nova às marcas, que as liguem ainda mais às pessoas, porque lhes dão estímulos novos. No entanto, fica no ar a terrível sensação de que, sem termos consciência, paira sobre nós uma nuvem bíblica. Existe a possibilidade de nós – aqueles criativos que sentem repulsa física por copy-pastes, aqueles criativos que só sentem a pupila dilatar com trabalho que traga algo de novo para as marcas – estarmos simplesmente a viver no tempo errado. Um tempo onde oferecer uma visão nova para uma marca é visto como uma imprudência que deve ser paga com desprezo ou ódio ou indiferença. Uma espécie de racismo anti-criativo, não maldoso ou mal intencionado, não fruto do pensamento de alguém em particular, mas simplesmente sinal dos tempos.
Se assim for, teremos apenas que dar tempo ao tempo. Se o tempo, como vem na Bíblia, for psicológico, ele acabará por mudar. Basta-nos prestar atenção às palavras dos profetas. Um dia ele chega. Se for amanhã, tanto melhor.
("tempo de profetas", do Ricardo Miranda, brand voice concept creator na brandia central- juro que quando souber o que é isso eu traduzo para os leitores - )
misterwalk não resiste comentar : o tempo bíblico não nos salvará, já que ele é antítese à criação verdadeira. a salvação, como sempre, virá dos iconoclastas, dos malditos que assim chamamos, porque nos oferecem a saída que ora recusamos pelas vias da nossa mediocridade, aquela que custeia a nossa(falsa)segurança; ora a "permitimos", enquanto nos convém, para logo-logo dar azo ao nosso bom mocismo que trata logo de pô-los no ostracismo que é a mais cruel e segura maneira de trancafiá-los, salvando a sociedade destes elementos distópicos. os resultados que cultuamos - os falso resultados - não resistem a confrontação com o saldo que só a verdadeira criatividade consegue - na propaganda, no marketing ou em qualquer área da vida. com diria o filósofo(que não era profeta mas enxergava o que os deuses querem encobrir e bem antes destes citados) as coisas não ficam ruins porque ousamos ou seja porque buscamos caminhos diferenciados(criativos) as coisas ficam ruins - e os tempos - porque não ousamos. o resto é bull-shit ou conversa bíblica para a boiada dormir.
Um comentário:
Imagino a cara de azia de um cosplay de criativo ao ouvir alguém sugerir que ele deveria conhecer um pouco mais de filosofia, ainda que fosse uma cadeira básica de uma dessas faculdades de 169 reais da vida...
Bom resgate e boas notas, Celso.
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