COPY DESK, O ANÔNIMO EDITOR DE TEXTO
Fui copy a vida inteira. Chamava-se redator, uma função que
sumiu na imprensa. Chegávamos mais tarde e saíamos por último, junto com o
editor. Recebíamos os textos, copidescávamos, fazíamos o fechamento, como
títulos, olhos, legendas etc. Hoje repórter faz tudo isso. A terceirização
desses encargos liberava a reportagem da chatice de acertar o número exato de
toques de um título sem cair no ramerrão muito comum hoje, de usar “diz que” ou
verbos esdrúxulos como mirar (mira é curto, aparentemente resolve, mas fica
estranho). Um bom copy é obrigatoriamente criativo, além de competente, e o
primeiro a ler a matéria, o amigo dos leitores do jornal ou revista.
Os copys eram anônimos para o grande público, só conhecidos
e valorizados no meio jornalístico. Chamavam um bom copy de “puta texto”, que
extraía maravilhas de uma maçaroca de dados. Grandes copys ficam na História,
como o legendário Miltainho, Mylton Severiano da Silva, que fazia dupla com
repórteres antológicos como Hamilton Almeida Filho. Outros se revelaram
escritores famosos, como o Fernando de Morais ou Humberto Werneck. E muitos
ficaram naquele circulo compenetrado dos grandes fechadores, exímios artífices
da língua, como Antenor Nascimento ou Genilson César. A relação com os editores
costumava ser amigável, pois resolvíamos um monte de pepinos, mas com a
reportagem havia tumulto.
“Foi você que mexeu no meu texto?” perguntou a repórter da
Ilustrada, da Folha de S. Paulo, furiosa, com o jornal na mão, no meu segundo
dia de copy no caderno. Fui, respondi. “Então da próxima vez não assine meu
nome, porque eu não escrevi isso”. Ok, tornei a falar. Vou fazer isso. Não vou
assinar seu nome e continuar copidescando. O texto da moça era muito ruim e em
um mês ela ficou minha amiga. Descobriu que eu trabalhava a favor dela. Fazia
questão de assinar tudo. O copy assumia uma espécie de missão cívica, com o
mesmo espírito do trabalho solidário.
É preciso gostar de escrever, gostar do que os outros
escrevem, admirar a reportagem, não causar problemas ao editor, não guardar
ressentimentos, não querer brilhar com o trabalho alheio, nem colocar as patas
nele. Um copy é um especialista em extirpar lugares comuns, descobrir furos na
estrutura do texto, buscar informação para resolver impasses, entrevistar o
repórter, checar as fontes, entregar tudo no prazo e retirar-se todos os dias
para sua caverna nas montanhas. Lá no alto, ele medita esperando o sol nascer
de novo para iluminar o vale das palavras.
A TV Guia, revista da Abril que durou sete meses em 1977,
baseada na TV Guide americana, foi meu momento xis do copy. Trabalhava junto
com dois craques: Macedo Miranda, Filho, que citei várias vezes em meus textos
de memórias, e Ricardo Vespucci, o Bi, figura maravilhosa que já partiu pra o
Outro Lado. Com eles aprendi a técnica do texto redondinho de revista, aquele
que tem o desfecho sintonizado com o início e costura parágrafos sem dor, para
que a leitura flua como veleiro em tarde tépida de outono. Não se trata de
facilitar a vida de ninguém, mas de seduzi-la pela qualidade do trabalho,
torná-la prazerosa, aventureira, com revelações. Tínhamos material para isso.
Os textos vinham de gente pesada como Caco Barcelos ou Audálio Dantas, que nos
entregavam grandes reportagens de uma dez laudas, o que era um despropósito
para o formato da revista (do tamanho de uma meia Veja).
A TV Guia pagava muito bem, mas sofreu concorrência acirrada
do grupo Manchete (que emplacou algo parecido nos seus veículos e que era dado
de brinde). Era sofisticada, pois além da programação completa das TVs tinha
belas reportagens. E havia chance de os copys assinarem artigos sobre temas
variados, o que fiz algumas vezes. A revista tinha como editor o Woile
Guimarães, que mais tarde foi para a Rede Globo. Macedo Miranda viera de lá e
para lá voltou. Depois montou uma empresa própria e continua sendo um
profissional respeitado e talentoso.
Na Ilustrada, um descanso para o copy chamava-se Paulo
Moreira Leite, que depois ficou muitos anos na Veja, foi correspondente em
Paris e hoje está na Época. Paulo tinha o texto perfeito e eu colocava a caneta
de lado quando recebia uma reportagem dele. E na Ilustrada havia espaço para
publicar tudo, diferente da TV Guia em que havia necessidade de inventar outro
texto para caber as informações. O maior desafio situava-se no lead. Meu melhor
lead, não canso de lembrar, foi sobre o Cyborg, o sujeito que era metade gente,
metade máquina: “Todo mundo tem seu lado humano. O de Cyborg, é o esquerdo” .
Sinto falta, como leitor de jornais diários, principalmente
nas versões on line, da função do copy. Noto erros grosseiros que seriam
eliminados na primeira leitura. Passam lotado para a edição, que, parece, não
lê mais nada. Se der erro, demita-se o repórter. Não deve ser assim. Jornalismo
é como cinema, trabalho de equipe, com responsabilidade compartilhada. Tudo se
soma para evitar transtornos aos leitores. Depois não se queixem da morte dos
jornais. Não é a concorrência da internet que os leva à falência. É a falta de
coisas básicas, como um bom copy-desk. Noto agora que meu afastamento das
redações coincidiu com o fim da função que eu exercia. Fiz muita reportagem e
fui editor várias vezes. Mas o que gostava mesmo era navegar nas matérias que
vinham de todos os lados.
Não cuido mais de texto alheio. Quando me pedem, distribuo
positivos, pois crítica hoje ofende e pode fechar o tempo. Tenho mais o que
fazer. Mas posso ensinar o ofício, se é que existe gente que queira aprender
uma função extinta. Copy é como o latim, que não é mais falado, mas é a base da
língua. No mínimo, forma escritores. Ou pelo menos pessoas focadas na claridade
e força das palavras.
RETORNO – 1. Dei uma copidescada no texto acima, ficou
melhor, sem vários ruídos. Todo copy precisa também de um copy. 2. Acho que
foram os preconceitos (além da eliminação de funções para aumentar os lucros)
que derrubaram o copy. Achavam que o redator “dourava a pílula”, colocava
cerejinha em cima do bolo da reportagem. Um soldado da Legião Estrangeira não
doura pílula, afia adagas e azeita rifles. Outra iéia de jerico era confundir
copy com revisor. Revisão é outro departamento, também importante, e que dá
grande apoio ao copy. Mas as funções são diversas. O revisor não tem a
autonomia do copy, não muda, apenas checa e corrige. Já o copy não pede
licença. Deadline não espera.
Nei Duclós
(*misterwalk observa: na publicidade o copy, ou o copydesk, é ou deveria ser o diretor de criação. mas estes hoje, o único trabalho que fazem é colocar seu nome na ficha de trabalhos que acham podem ganhar prêmios. mas do que isso, menos por mau-caratismo e bandalheira não o fazem porque já não sabem mais escrever)
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