sábado, agosto 07, 2010

duro de roer ou não vou me adaptar


Sancho Pança é o fiel escudeiro do Dom Quixote. Muita gente sabe disso, mesmo sem ter lido o livro “O engenhoso cavaleiro Dom Quixote de la Mancha”. O que muitos não sabem, pois isso escapa aos resumos dessa obra, é que Sancho, em suas falas, é muito dado à utilização de ditos populares, é um mestre das frases feitas, o que irrita profundamente a Dom Quixote, que é homem letrado e adepto dos longos discursos argumentativos – que, mesmo dentro do universo de sua loucura, são muito bem construídos e esbanjam força persuasiva.

(Abro parêntesis para comentar como vale a pena ler o Quixote. Embora os acadêmicos já tenham destrinchado e continuem destrinchando a obra-prima de Cervantes, sacando daí mirabolantes interpretações, o livro é de uma simplicidade exemplar. Aquém das teses dos estudiosos, que acabam conferindo ao livro a imagem de complexidade – infelizmente afugentando muitos leitores –, O engenhoso cavaleiro Dom Quixote de la Mancha pode também ser lido apenas como uma história divertidíssima de um maluco que pensa que é um nobre cavaleiro andante e que sai com seu escudeiro em busca de aventuras pelos confins de La Mancha, na Espanha).

Mas voltemos ao que eu estava falando antes. Sancho Pança é o cara das frases curtas e bem colocadas. Está sempre pronto para lançar a fala certa no momento certo. Tem sempre um pequeno texto que cai como uma luva em cada situação. E se o dito popular não se encaixa perfeitamente, ele o adapta. É o cara das “sacadas” rápidas, como se diria em uma agência. Mas, se Sancho Pança fosse um redator, ele se sairia bem? Em parte, pode ser que sim. Para títulos de anúncios, por exemplo, o estilo Pança poderia funcionar. Para outdoors também. Para qualquer peça que necessitasse uma sacada ágil e engraçadinha, justa pra o momento, o redator-Pança daria conta do recado.

Mas e se Sancho tivesse que pensar em um roteiro de um minuto ou em todo o conteúdo de um site? E se fosse convocado a participar de uma reunião pra discutir conceitos e estratégias de comunicação? E se nas mãos de Sancho caísse um briefing para um anúncio de jornal que necessitasse a concatenação de vários argumentos em dois ou três parágrafos? Aí talvez o redator-Pança tivesse que pedir ajuda ao redator-Quixote:

- Ô, Quixote, eu faço o título e você escreve o resto, tá?

Nas salas de aula dos cursos de publicidade (e nas agências também!) aparecem sempre muitos candidatos a redatores-Pança. No maior estilo repentista, o sujeito solta uma frase mágica e se dá por satisfeito, achando que o trabalho do redator acaba por aí. E o Quixote fica lá, trabalhando no “resto” do texto: constrói frases, destrói frases, as conecta de formas diferentes e tenta incansáveis outras opções de construção; troca palavras, lê em voz alta, percebe o ritmo e a sonoridade; tira dúvidas no dicionário e na gramática, consulta referências, ajusta a pontuação; enfim, trabalha para deixar seu texto enxuto, elegante e criativo, e certamente se orgulha do resultado, que entra pro seu portfólio e que vai encher os olhos de qualquer diretor de criação sério que analise a sua pasta.

Não critico os Sanchos Pança da vida, desde que se esforcem para ter a consistência dos redatores-Quixote. Mais do que ser engraçadinho, o redator tem que mostrar raciocínio coerente, capacidade de organização das idéias, domínio de sua ferramenta (o idioma) e visão estratégica. O ideal mesmo é que o redator incorpore as qualidades tanto de Pança quanto de Quixote: que tenha sim as fundamentais sacadas, mas que, depois, se debruce sem preguiça em seus textos para lapidá-los até que pareçam perfeitos. Quem sente prazer neste trabalho suado com o texto – não são muitos – são os que têm o verdadeiro perfil de redator.


(sancho pança, redator publicitário, do sérgio calderaro, no acontecendo aqui.artigo publicado originalmente no “Perdi Essa Aula” – www.perdiessaaula.com – em 07.06.10)


Sérgio Massucci Calderaro (São Paulo, 1971). Publicitário e escritor. Atuou no mercado de comunicação de Florianópolis durante 11 anos (Gás Multiagência, QUO Graphis, DZigual, Editora Insular, Editora Expressão, entre outras). Foi professor de Redação Publicitária da Faculdade Estácio de Sá. Atualmente vive na Espanha, onde é assistente de Imprensa e Divulgação da Embaixada do Brasil e cursa o doutorado "La lengua y
la literatura en relación con los medios de comunicación", da Universidad Complutense de Madrid.



Cassio Morais disse:

Sérgio,
até hoje sou um redator muito mais pança do que Quixote, talvez mais por causa do modelo de propaganda atual mesmo. Está difícil achar por aí consumidores que tenham curiosidade (vontade) de ler os textos com atenção até o final. Com a velocidade do mundo em que vivemos a maior parte das pessoas lê apenas os títulos mesmo e, se formos ver, é um grande desafio dizer tudo em uma linha. Trabalhei com um redator que já ganhou ouro em cannes e escrevia longos textos, para isso levava bastante tempo também - e consumia boa parte do layout tornando o visual desinteressante. Resultado: durou um mês aqui. No meu caso, hoje, pela prática, já sou muito mais Quixote do que era, mas continuo Pança na essência. E não vejo outro caminho: ou nos adaptamos ao mundo em que vivemos, ou ficamos lamentando. Os redatores estão perdendo um pouco a importância nessa sociedade da imagem. Como diria Woody Allen: a realidade é dura, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom bife.

Um comentário:

Anônimo disse...

Celso, obrigado pela divulgação do meu artigo aqui no seu blog.
Um abraço!
Sérgio Calderaro.