sexta-feira, fevereiro 17, 2017

no abandono da fala popular mais um "ave globo" em coro

foto:renata pires


No Marco Zero, tocava uma orquestra afinada, passistas faziam um passo de acrobatas, cercados de gente de muitas idades e lugares. Mas eis que de repente, no azul do céu do cais, foi anunciado o frevo de bloco Evocação nº 1, de Nelson Ferreira. Para mim, coisa melhor não há, e me deixei ficar em desarmada prelibação do que viria. Um calor de felicidade correu no peito em atenção à lembrança que guardamos da letra, da canção, do coral de Batutas de São José, do tempo imorredouro da melodia. Então a voz da cantora soltou:
"Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon
Cadê teus blocos famosos?..."

Mas esses primeiros versos não dizem bem o que ouvi. Outra canção se fez presente já no começo, porque a cantora cometeu um "Fê-linto". De imediato, esclareço que tal variação na prosódia local não é coisa boba, sem importância. Nós estamos falando de um hino da cidade. Trata-se de uma das maiores obras de Nelson Ferreira. Mas o melhor veio depois. Terminada a música, fui ao animador do encontro e lhe fiz ver que aquela "pronúncia" não era conforme a original. Então ele me respondeu com o ar mais puro da tarde:
- Todos cantam assim.
Eu lhe respondi:
- A gravação original da Evocação nº 1 não é assim.
O rapaz ficou atônito. Que coisa mais chata é esse cara vir dizer que estão cantando mal Nelson Ferreira. Mas ele foi salvo por uma senhora, que a tudo ouvia e, mesmo sem ser chamada, achou por bem intervir. Ela me mostrou o celular onde estava a letra da Evocação no trecho "Felinto, Pedro Salgado....". E me disse:
- Está vendo? É assim que se escreve: Fê-lin-tô.
Toma, além de me ver como um homem sem memória, ela me transformou num analfabeto. Eu lhe respondi:
- É assim que a senhora lê? Fê-lin-tô?
- Sim - E me fitou de cima a baixo, indignada, como a me responder "se o senhor não sabe ler, o problema é seu". Mas veio mais suave, apesar de autoritária: - Eu sou professora de português.
- Então a senhora sabe que as palavras não se leem como se escrevem.
- É? Saiba que português não é inglês. É diferente: aqui a gente lê como se escreve.
Vocês veem que era um diálogo impossível. Uma verdadeira peleja do bem, que é a nova pronúncia, contra o mal, que pesquisa a história de uma cidade. E o mal sempre perde no fim.

Mas para o leitor retomo a palavra que não pôde ser ouvida. Primeiro, escute a gravação original da Evocação nº 1. https://www.youtube.com/watch?v=7FNhDiqLErY
Ouvimos Filinto, não é? Depois, ouça os Fê-lintos, até no Bloco da Saudade.

Lembro que a mudança no som das vogais não é exclusiva da Evocação nº 1. Cantam agora o Bloco da Vitória, de Nelson Ferreira, assim: "quando o povo dê-cide".

Ora, o verso de Nelson vinha do refrão eleitoral "quando o povo diz Cid". O original do Bloco da Vitória fazia um trocadilho entre "o povo diz Cid", da campanha de Cid Sampaio em 1958, e o verbo decidir. Daí que "diz Cid" virou "decide" na letra e dicide no som.

Mas por que a mudança hoje? Seria uma evolução natural da língua, que virou a nova prosódia pernambucana? Na verdade, os cantores dos frevos de bloco reproduzem um modelo de fala que julgam culta, educada. É constrangedor ouvir, ver blocos de carnaval do Recife submissos à prosódia dos apresentadores de televisão. Cantam Nelson Ferreira traduzido para um modelo de locução que vem de fora. Nada mais anti-pernambucano, violentador da história da cidade.

A nossa elite não sabe, despreza: a fala popular é a própria língua da história. A população fala a língua que guarda um fio de continuidade entre a identidade de um lugar e a civilização. Os professores deviam gravar a fala do povo nas feiras, nos mercados públicos. Aí aprenderiam que Felinto sempre foi Filinto, jamais Fê-lin-tô. Pelo menos no Recife.


* o frevo que se canta hoje no recife, do urariano mota, para a 24/7 (autor de "soledad no recife", que recupera os últimos dias de soledad barrett, mulher do cabo anselmo, entregue por ele à repressão, e do " filho renegado de deus, primeiro lugar no prêmio guavira de literatura 2014. 

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