A única negra da Criação por Joana Mendes
Primeiro dia de agência, espero o Diretor de Criação para me apresentar ao resto da equipe. Enquanto aguardo, vejo subirem os que viriam a ser meus colegas de trabalho, a maioria ali é composta de homens brancos. Meu DC chega. Ele é branco, alto e tem um daqueles sobrenomes que precisam ser soletrados. Muito simpático, diz que está super feliz que eu faça parte do seu time. Vamos conhecer a Criação? Vamos.
Subimos no elevador, a agência é linda, já apareceu em revistas e mais revistas de design. Uma série de troféus estampa as paredes. Eu sempre quis trabalhar aqui. Logo, chegamos até meu andar. Enquanto caminhamos, eu vejo um homem e uma mulher negra conversando. Os dois usam uniforme de serviços gerais. Sorrio para eles, numa tentativa de me dizer negra também, mesmo que não me ponham uniformes. Sorriem de volta e abaixam o olhar.
O Diretor de Criação começa as apresentações. Aperto a mão de todos, vejo gente conhecida de outras agências e me dou conta que estou fazendo um cálculo que sempre faço. Bom, eu sei que a população que se auto-intitula negra no Brasil é de 54%. Então, todas as vezes que eu entro em um lugar de classe média, eu viro meu pescoço e vejo quantos negros têm ali, visitando, comprando, comendo, assim como eu. Negros que estão ali consumindo, não servindo. Na maioria das vezes, eu sou a única.
Quando o meu teste termina, percebo que, assim como nos espaços de elite, também não vejo nenhum outro negro na Criação. Isso não é exatamente uma novidade. A agência que trabalhava antes dessa tinha até muitos negros: entre 300 pessoas, éramos 7.
Como eu cheguei aqui? Como uma mulher negra pode ser redatora sênior num lugar que não tem mais nenhum negro?
Graças à uma vida de privilégios. A minha família faz parte do 1% dos negros de classe alta do Brasil. Nem sempre foi assim, minha avó era empregada doméstica e enfrentou um sem número de humilhações. Numa dessas, ela fez uma promessa que a sua filha não limparia o chão de ninguém. Todos os dias, a minha avó fazia questão de lembrar à minha mãe que ela era preta e que ser preto nesse país não é fácil. Ser mulher preta pode ser uma das coisas mais difíceis que você tem que enfrentar na vida.
Minha avó não sabia das estatísticas que eu sei: a cada 12 minutos uma pessoa negra é assassinada, nos últimos 10 anos, o assassinato de mulheres negras aumentou em 54%, mulheres negras ganham até 30% do valor que um homem branco com a mesma qualificação, negras são as que mais morrem por abortos, as que mais morrem no parto, as que menos estudam. Mulheres negras são a maioria da população brasileira. A minha avó sabia o que é ser negra de dentro da pele, sabia o que é ser mandada para trabalhar em casa de família com 10 anos de idade e parar de estudar, somente, por ser uma mulher negra.
Eu brinco dizendo que minha avó foi o Governo Federal da minha família, ela criou as cotas, por isso, minha mãe fez doutorado e conseguiu ascender socialmente. Por essa ascensão social, eu pude ser publicitária, uma profissão que exige que você seja privilegiado, uma profissão em que você pode demorar para ganhar dinheiro, pode fazer um estágio não remunerado, pagar uma Miami Ad School. Seus pais estão ali, pra te ajudar se você precisar. Nesse país, a maioria das mulheres negras não têm esse privilégio. Aliás, num país tão racista, a ascensão social é extremamente difícil.
Chega a hora do almoço. Um colega das antigas me chama para comer com meus novos colegas. Os papos seguem um protocolo bem conhecido: algumas palavras em inglês, novos restaurantes, novos drinks, viagens para lugares exóticos, aquela obra que fica no MoMa e a última vez que ele encontrou o Dedeco foi em Cannes. Acho engraçado quando me pronuncio sobre algum restaurante, um filme, ou quando fui Young Lions e parecem não acreditar que eu sei o que eu sei. Nada é mais novidade. Eu passei a vida inteira sabendo que uma mulher negra precisa trazer cópia autenticada em duas vias pra provar que sabe de alguma coisa. Na volta, penso no tanto de gente branca menos talentosa que eu vi crescer nos mais de 10 anos que sou redatora, o tanto de gente que teve um mestre, enquanto eu tinha que chegar pronta. Fico puta.
Alguns dias depois, meu DC chega até minha mesa e fala: Jô, você pode vir tirar uma foto? Claro que posso. Uma mulher e um homem já estão no local das fotos. Os dois são brancos de olhos verdes. Muito animado, o homem me pergunta: você sabe por que está aqui? Sem pensar, respondo: sei, ué. Por que eu sou negra. Ele emenda: é, bom…nós vamos mandar a foto pra matriz nos Estados Unidos. É importante que eles vejam que existe diversidade no ambiente de trabalho aqui do Brasil.
A verdade é que eu estou bem cansada de ser a única negra da Criação. Cansada de ter passado pela história que eu acabei de contar tantas vezes, que ela deixou de ser a história de uma agência só. Eu estou cansada de não ver outros negros nas salas de reunião, nas baias, nas faculdades e, nem mesmo, na propagandas.
Ao mesmo tempo, eu sei de algumas coisas que me dão esperança. Eu sei que existem medidas a longo prazo que podem criar uma elite negra: cotas nas universidades, nas empresas, melhoria do ensino público. Eu sei, também, que existem coisas que você pode fazer de dentro da sua agência, de dentro do seu lugar de privilégio na sociedade: veja que você é racista, encare o seu racismo, participe de eventos negros, quieto, ouvindo, aprendendo. Um dia, se vir racismo e não houver um negro que possa falar, fale. Peça mais negros dentro da equipe, um casting negro para participar daquela campanha, procure o movimento negro quando pensar em campanhas do tipo #somostodosiguais.
Quem sabe um dia, a gente não chega a ser 54% de uma agência?
Ah, aliás, eu e mais três amigos negros estamos criando uma consultoria. Traz sua conta pra cá.
(pretas na publicidade, 65/10 : a única negra na criação, por joana mendes)