quarta-feira, julho 20, 2016

deus, esse cara abusado ou, porquê sou um cara desabusado


O Abuso de Deus  (por Márcia Tiburi*)


Intolerância e Democracia religiosas no tempo das novas mistificações

Deus sempre foi usado por pessoas e instituições como uma espécie de verdade que tudo justifica. Barbaridades e maldades foram feitas em nome de Deus.
Violências físicas e simbólicas são até hoje realizadas pelas mais diversas pessoas e religiões em nome de Deus.
Podemos citar exemplos históricos envolvendo intolerância religiosa, algo que se dá sempre em nome de Deus. Judeus, cristãos e muçulmanos de tempos em tempos massacram uns aos outros tendo como base a ideia de que o Deus único no qual creem está mais para o seu lado do que do lado dos outros. A caça às bruxas medieval, a perseguição a ateus e apostatas, não difere muito da contemporânea perseguição às mulheres e à homofobia das quais algumas Igrejas – instituições reconhecidas por sua misoginia – ainda estão cheias. Muitos dos crimes motivados pelo preconceito e pelo ódio tem como base ideias religiosas e obscurantistas sobre supostas verdades acerca da natureza humana e da natureza divina. Deus desde sempre é um tema que, como política e futebol, tem o poder de reunir fanáticos e separar cidadãos. Deus pode ser um perigo.
Para evitar guerras e violências é que se defende um Estado laico, um Estado sem religião oficial e que sustente a democracia religiosa, ou seja, o direito de cada um exercer sua crença respeitando a do outro. Democracia religiosa é algo que só um Deus amoroso pode desejar. Mas nem todo mundo usa um Deus bacana, um Deus do bem, para fazer religião, muita gente quando faz religião nem lembra que um bom Deus possa existir.
Assim é que se usa Deus – que nem imagina o que pode estar sendo feito em seu nome. Podemos dizer que, em nossa época, “Deus” está baratinho, pode ser vendido em qualquer esquina, basta alguém resolver explorá-lo como se explora uma criança na rua ou uma mulher sexualmente. A cafetinagem de Deus sempre foi um bom negócio.
É assim que, no Brasil, as igrejas crescem como nunca. O poder religioso exercido pelas igrejas é poder como outro qualquer: violência, força, dominação, controle para sua própria manutenção. O poder religioso não vem sozinho, ele implica o poder do dinheiro com o qual as três grandes religiões sempre estiveram envolvidas. Riqueza e pobreza defendida por uns e outros em tempos e contextos diversos serve ao poder econômico de poucos, como sempre. Qualquer igreja, de um modo geral, nada mais faz do que administrar a fé no contexto do capitalismo. A fé é usada como Deus é usado. Capitalismo é religião mesmo quando nenhum outro deus além do capital está em jogo, mas sempre que o capital se confunde com Deus, quando Deus é o próprio capital, então esse poder é levado a uma potência indescritível.

Diz-me o que fazes com teu Deus e dir-te-ei quem és

Deus é usado e constantemente abusado. Deus pode ser uma ideia boa quando se faz um bom uso dela. Mas quando se faz um mau uso, essa ideia causa muitos problemas. Justamente porque Deus é uma ideia incrível e todo mundo quer usar uma ideia incrível. A ideia de uma Deus único, patriarcal, soberano, que tudo sabe, que tudo escolhe, que tudo decide, combina muito com a sociedade humana. Todo mundo quer ficar do seu lado e ter sua proteção.
Porém, nesse contexto, Deus é instrumentalizado pelas religiões que o usam como uma espécie de poder absoluto. E quem não obedece ao padre ou pastor, que defende algo em nome de Deus, pode se dar muito mal, acusado de herege ou banido da comunidade em que a questão religiosa está dada como fundamental para o convívio e a participação. É como ser vegetariano em um churrasco.
As liberdades democráticas se exercem de muitos modos, e a religião necessariamente é uma delas. Isso nos faz pensar que a intolerância religiosa é um mecanismo de controle social. O fanatismo religioso, nesse sentido, é sempre muito útil. Muito fácil submeter os outros aos desejos e à necessidade autoritária que o fanático faz sua. Muito fácil usar o “meu Deus” como desculpa para todo tipo de violência simbólica ou física.
No Brasil o fundamentalismo religioso está em voga. Se novas igrejas de todo tipo surgem em cada esquina, é porque isso é permitido no contexto do Estado laico. Ao mesmo tempo, cresce a intolerância e outros vícios comuns às religiões. Isso significa que as igrejas que surgem não têm feito muito bem o seu papel sempre prometido de levar Deus – que deveria ser uma coisa boa – às pessoas.
Atualmente vemos um elogio das novas igrejas neopentecostais que dariam um lugar de reconhecimento ao povo invisibilizado. Alega-se que aquele sujeito invisibilizado por sua condição de classe tem um lugar de reconhecimento na igreja que ele procura ao deixar seu posto de trabalhador ou subtrabalhador. As pessoas abandonadas pelo estado e pela sociedade encontrariam um lugar na igreja. Aqueles abandonados pelas igrejas tradicionais também. Quem defende esse tipo de ideia tem toda a razão, o desamparo faz crescer a religião. Mas é uma razão precária e perigosa porque rebaixa o sentido do reconhecimento. Um trabalhador invisibilizado, uma pessoa desamparada, tem que ser reconhecido como sujeito de direitos e não como um pobre coitado que tem que agradecer ao sacerdote que vai extorqui-lo por chamá-lo pelo nome e lhe dar um olhar como esmola.
Pensa-se nesse tipo de teoria na base do sentimento de pena para com aqueles cidadãos que são rebaixados pelo sistema, e pelo discurso dos intelectuais que teriam compreendido o sentimento do povo, a pobres coitados dos quais pelo menos a igreja se ocupa. Ora, a igreja sempre usa os pobres para ter poder, como um dia usou os indígenas, como usa as mulheres, como usa as pessoas que sofrem dando-lhes em troca, quando convém, alguma migalha do seu poder.
Não estou pregando a impiedade, mas pondo em questão que o “reconhecimento” como categoria política não pode ser usada para fins perversos. Respeitar o sofrimento e a dor alheia, ou seja, ter compaixão, não pode ser tratado como mera piedade que só se sustenta enquanto muitos são rebaixados a pobres coitados.

Deus, um jogo de linguagem

A ideia de um deus único está envolta em muitos jogos de poder. Hoje em dia sabemos que jogos de poder são sempre jogos de linguagem. Jogos de linguagem implicam usos da linguagem.
Deus é um assunto que precisa ser analisado também nesse sentido, como um dispositivo de poder inserido em um jogo de linguagem. Nossa questão tem que ser “como se usa Deus” em um jogo de linguagem.
Se Deus existe ou não é uma questão falsa usada com fins específicos de mistificação. Todas as vezes em que alguém que acredita em Deus pergunta a um outro se ele acredita ou não em Deus, é provável que espere uma resposta positiva. Sempre me neguei a participar desses jogos. Todas as vezes em que me perguntaram se acredito ou não em Deus, preferi analisar a pergunta do que oferecer uma resposta.
Para certos crentes, sobretudo para os fundamentalistas religiosos, a hipótese de que Deus não exista não é muito boa. Para um crente fanático, a ideia de que o outro não acredita em Deus é devastadora. O crente fundamentalista não suporta que outros não acreditem nele. Porque “seu” Deus não vale para a sua alma, para os fins da sua subjetividade, mas sim como peça essencial em um jogo de poder no qual se usa a outra pessoa por meio de Deus. E, ao fazer isso, o que se faz é usar Deus, é instrumentalizá-lo mais uma vez.

Má fé e ideologia de Deus como abuso

Atualmente, no contexto do mau uso que se faz de Deus, pastores de igrejas neopentecostais ocupam o poder político no Brasil. Os pastores parlamentares são, de um modo geral, contrários a todos os avanços democráticos e aos direitos fundamentais e individuais. Como políticos muitas vezes são obscurantistas e oportunistas, capazes de desprezar direitos humanos e minorias e de, ao mesmo tempo, usarem esse espaço de debate e de poder como sendo sua propriedade.
A bancada evangélica no Congresso brasileiro cresce a cada eleição. Praticamente não há político, mesmo não sendo evangélico, que não leve em conta o peso do voto dos fiéis evangélicos em seus processos eleitorais.
A sustentação do Estado laico deveria ser cuidadosa com a candidatura e a eleição de líderes religiosos, de sacerdotes em geral, padres, pastores. Do mesmo modo que funcionários da mídia deveriam ser inelegíveis já que, de antemão, tem o capital espetacular e midiático que sempre pode se converter em votos fáceis.
A reflexão sobre a religião – que deve ser levada a sério para ajudar a diminuir a intolerância religiosa – não deve ser confundida com a crítica objetiva aos pastores evangélicos que passam a fazer política partidária e, com ela, buscam mudar os rumos do Estado laico que faz bem a uma sociedade de religiosidade plural. O que vale para juízes, a proibição de se dedicar à política partidária com vistas à eleição para cargos, deveria valer também para quem participa do poder religioso, ele mesmo, como todo poder, essencialmente político.
A relação entre religião e política implica a instrumentalização de uma pela outra. Isso quer dizer que os fins religiosos justificam os meios políticos, e os fins políticos justificam os meios religiosos. A ética, como reflexão sobre a ação, como preocupação com o outro, é jogada no lixo da história nesse arranjo.
As teorias e práticas obscurantistas de parcela dos pastores evangélicos em sua bancada cada vez mais poderosa, têm influenciado fortemente a mentalidade nacional e tem prejudicado a vida de muita gente. Mulheres, minorias religiosas, sexuais, étnicas, sem falar nas minorias de classe exploradas economicamente pelas próprias igrejas, estão na mira do que se configura como o mal radical realizado em nome da própria religião. Por mal radical define-se o mal que tem como objetivo simplesmente fazer o mal contra os outros. Uma espécie de mal profundo, um mal que se oculta em palavras mistificatórias, que não deseja a felicidade dos outros, que objetifica o outro como uma coisa, é disso que estou falando. O fiel é reduzido a alguém que se pode usar, seja para pagar o dízimo, seja para angariar o voto. O que está em cena é o mal pelo uso da fé que é a má fé.
Muitas igrejas sempre usaram de má fé para controlar o povo. Ao mesmo tempo, contam com a boa fé do povo e a manipulam como se as pessoas fossem incapazes de perceber o que se passa com elas. A isso podemos chamar de ideologia da fé. A fé usada para enganar, a fé manipulada, a fé transformada em mercadoria. E Deus servindo a isso tudo como se fosse um simples fiador. Mas é nisso que ele é transformado.
Se lembrarmos de propostas tais como a da “cura gay” ou do vem sendo chamado de “Ideologia de Gênero”, a gravidade da questão fica clara. As falas homofóbicas, os discursos misóginos (a ponto de se chegar a falar de estupro em potencial), a guerra contra a legalização do aborto como guerra contra as mulheres, não inova em nada a velha caça às bruxas da igreja que odeia as mulheres e homossexuais e que odeia a palavra gênero porque ela é uma palavra que desmistifica, que desmascara, que faz pensar. O que os pastores evangélicos têm proposto em diversos aspectos é simplesmente diabólico. Vindo de gente que se diz da fé, a coisa é ainda mais preocupante.
Essas práticas produzem um evidente controle da vida das pessoas e pode ser definida como oportunismo ideológico. As igrejas sempre fizeram isso, não é novidade o que pastores oportunistas das igrejas contemporâneas do mercado fazem. Apenas reeditam a mistificação e, num golpe de populismo por ignorância, abusam do povo e, para fazer vingar o seu abuso, usam Deus como ideologia.
Abusam, portanto, de Deus, mas como Deus não deve existir para elas, ou existe apenas como mercadoria, não há problema de consciência e eles seguem praticando o mal.

* Marcia Tiburi, graduada em filosofia e artes, mestre e doutora em filosofia. Publicou diversos livros de filosofia, entre eles “As Mulheres e a Filosofia” (Ed. Unisinos, 2002), Filosofia Cinza – a melancolia e o corpo nas dobras da escrita (Escritos, 2004); “Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero” (EDUNISC, 2008), “Filosofia em Comum” (Ed. Record, 2008), “Filosofia Brincante” (Record, 2010), “Olho de Vidro” (Record 2011), “Filosofia Pop” (Ed. Bregantini, 2011) e Sociedade Fissurada (Record, 2013). Publicou também romances: Magnólia (2005), A Mulher de Costas (2006) e O Manto (2009), Era meu esse Rosto (Record, 2012). É autora ainda dos livros Diálogo/desenho, Diálogo/dança, Diálogo/Fotografia e Diálogo/Cinema (ed. SENAC-SP).
É professora do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie e colunista da revista Cult.