Amanhã(hoje) à noite, quando os primeiros acordes de “Jumpin’ Jack Flash” eletrizarem as areias de Copacabana, centenas de milhares de pobres garotos cariocas de todas as idades sonharão, como milhões de outros pobres garotos do mundo inteiro vêm fazendo desde 1962, serem Mick Jagger ou Keith Richards. Talvez valha a pena lembrar que os Glimmer Twins um dia sonharam, como tantos (não tão) pobres garotos ingleses, ser outra pessoa. No caso específico deles, Muddy Waters.
A banda de Jagger & Richards, aliás, perdoem-me, amigos beatlemaníacos, a maior banda de rock da História foi batizada a partir de uma música de Waters. Até 1963, ela se apresentava como The Rollin’ Stones, sem o gê, com o apóstrofo, respeitando a grafia original da música gravada pelo bluesman americano em 1950. Só passou a se assinar The Rolling Stones por insistência do empresário Andrew Loog Oldham, tão jovem quanto os músicos, mas já ex-relações-públicas dos Beatles, que também amavam Muddy Waters.
O ídolo dos ídolos nasceu McKingley Morganfield, a 4 de abril de 1915, em Rolling Fork, Mississippi. Sua mãe, solteira, adolescente, morreu quando ele tinha 3 anos. Ele foi morar com a avó materna, que o apelidou Muddy (Enlameado) por causa de seu gosto em chafurdar descalço no charco perto do barraco deles. Waters (Águas) foi acrescentado depois, transformando o nome artístico num tributo ao rio que batizou seu estado natal.
Enquanto trabalhava numa fazenda, ele ouviu Son House tocar violão deslizando um gargalo de garrafa quebrado sobre as cordas de aço, fazendo-as chorar, na técnica cohecida como slide guitar . Pirou. Logo o aprendiz Waters estava sendo gravado pelos folcloristas Alan Lomax e John Work III, da Biblioteca do Congresso. O ano era 1941 e os dois percorriam o Sul dos EUA atrás, principalmente, de Robert Johnson. Entretanto, o autor de “Love in vain” vivera e morrera (três anos antes) envolto em mistério e mito.
Como tantos pobres garotos negros do Mississippi fizeram, sonhando com melhores condições de vida, Muddy Waters tomou o rumo de Chicago, em 1943. Lá, encontrou um emprego como motorista de caminhão e um desafio como músico: como se fazer ouvir por sobre o burburinho dos clubes do gueto South Side? Ele, então, ligou um amplificador em sua guitarra. Este blues de Chicago, elétrico, mais agressivo que o blues acústico do Delta do Mississippi, seria um dos idiomas formadores do rock inglês dos anos 60 e 70.
Nos finais de semana, Waters acorria ao mercado da Maxwell Street, para participar de jam sessions , enquanto gravava os primeiros trabalhos para o selo Aristocrat (futuro Chess) em 1947. Curiosidade: quase vinte anos depois, em 1964, o seu antigo rival do selo Unite, Robert Nighthawk, chegaria a gravar um disco em plena Maxwell. Dá para escutar a buzina dos carros que passam. Sem pioneiros como os dois bluesmen , shows para grandes multidões ao ar livre, como o de amanhã, em Copa, seriam impensáveis.
A própria música dos Stones seria impensável. Não teríamos tido “You got the silver” ou “I got the blues”. No início da carreira, tudo o que Jagger queria era cantar como Waters. E tudo o que queria Richards, o principal guitarrista, o sujeito que sonhou (literalmente, a se acreditar na sua versão) os acordes de “Satisfaction”, era tocar como Waters. E como Bo Diddley e Chuck Berry, primeiros astros do rock’n’roll, tributários, eles mesmos, de Waters. O primeiro álbum dos Stones, de 1964, incluía uma empolgada versão para “I just want to make love to you”, gravada por Waters, quem mais, dez anos antes.
A música era de autoria do baixista Willie Dixon, outra lenda, então membro da banda que acompanhava Waters, junto com o segundo guitarrista Jimmy Rogers, o gaitista Little Walter, o pianista Otis Spann e o baterista Fred Below. Aos amantes do blues, esses nomes soam como o meio-campo e o ataque do Botafogo em 1967-68: Carlos Roberto (obrigado, campeão!) e Gérson; Rogério, Jairzinho, Roberto e Paulo César. Só craques.
Spann ainda estava na banda de Waters quando ele fez sua primeira incursão à Inglaterra, em 1958. A apresentação foi no St. Pancras Town Hall, zona norte de Londres. O choque que sua guitarra Fender Telecaster branca, “violenta, explosiva”, deu na platéia de fãs de jazz gerou um aplauso “quente e forte”, nas palavras do jornal “Melody Maker”. Quando ele voltou à cidade, cinco anos depois, tocando blues do Mississippi em seu violão, houve uma certa frustração. A garotada local, afinal, já estava fazendo barulho nos pubs , prestes a devolvê-lo aos EUA, na forma de Rolling Stones, Beatles, Yardbirds.
Quando Waters morreu, em 1983, aos 68 anos, Jagger, Richards, Paul McCartney, Eric Clapton, Jimmy Page, todos ficaram meio órfãos. Até hoje, porém, a cada acorde dos Rolling Stones ou dos americanos White Stripes, as águas lamacentas voltam a se agitar.
Arthur Dapieve, O avô de Lucas, in o Globo
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