terça-feira, abril 11, 2006

meu ouvido não é pinico não

O guião(roteiro) do spot começa com indicações claras do redactor: "Noite. Inverno. Som de sala vazia". O problema é que essas indicações não servem para nada. Qual é o som da noite? O que difere o ruído do Inverno dos barulhos da Primavera? O que raios quer dizer "som de sala vazia”? Histórias como esta acontecem todos os dias. Mais de um século depois da sua invenção, ainda há quem não perceba os mínimos olímpicos do meio rádio. Nomeadamento no que toca a publicidade. Um spot de rádio não pode ser um conjunto de boas intenções. Não pode ser apenas a união entre a vontade de contar uma história que faria mais sentido na TV (se é que faria sentido nalgum lugar) e o esforço inglório de alguns técnicos e locutores. O papel agarra tudo. Mas tente em poucos segundos estabelecer cenários e personagens dentro de uma narrativa sem perceber a lógica específica da rádio. O resultado pode ser desastroso. Sempre que faço um workshop sobre o tema, peço aos alunos para tentar contar uma história em poucas linhas através apenas de diálogos. O resultado demonstra alguns conceitos básicos: as personagens na rádio (mais do que na TV) são mais flats, mais clichés. É preciso que seja percebido em dois ou três segundos se são velhos ou novos; desta ou daquela região do país; se são pobres ou ricos; se são polícias ou tarados (nalguns casos até podem ser polícias e tarados). Na rádio, não há muito lugar para a subtileza, para o subtexto, para a entrelinha. Ou é ou não é. Todas as muletas narrativas podem e devem ser utilizadas: o ranger de uma porta que abre, um telefone que toca, música de casamento, barulho de restaurante, chuvas e trovoadas, carro a travar. Mas atenção: se pensa que os recursos sonoros são ilimitados, engana-se. A atenção do ouvinte é mínima. Tudo o que não ajuda a contar a história só atrapalha. E nem tente escrever coisas como: "e no final, o locutor faz uma voz engraçada". Isso não é nada. Se o seu spot pretende ter piada, que o seu guião tenha isso já pela própria natureza. Aliás, quem disse que um spot precisa de ter piada? Se calhar, a chave pode estar na música muito bem escolhida. Ou num texto sensível, pertinente e envolvente. A rádio está poluída de spots onde casais conversam sobre o nada, de crianças de voz enrolada falam maravilhas de produtos que não são para elas, de adolescentes que pouco dizem para além da santíssima trindade da eterna juventude (os famosos: "bué", "fixe" e "baril"). Outra coisa importante é o tamanho do spot. Os clientes às vezes têm dificuldade de perceber algumas leis da física, como aquele que fala que dois corpos não ocupam o mesmo espaço e insistem em colocar em spots de 15 segundos um número de palavras próximo ao encontrado no dicionário da Porto Editora. E, claro, não descure a importância dos locutores. A escalação de um locutor para um anúncio deveria ser tratada com o mesmo sentido de relevância das escolhas do Scolari para a selecção nacional. Dificilmente um bom locutor irá salvar totalmente um mau guião. Mas, de certeza, que um equívoco na escolha do locutor (nem é preciso que ele seja mau, apenas não era o indicado para aquele spot) irá fazer um bom guião parecer tão interessante quanto um recital baseado na lista telefónica. Mas, faço questão de fazer essa resalva, Portugal conta com muitos bons locutores. Não é por aí que o porca torce o rabo. Ou como diria o meu Tio Olavo: "Para alguns redactores, o melhor sinónimo para a palavra ‘ouvido’ parece ser a palavra ‘retrete’".

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