o blog que dá crise renal em quem não tem crise de consciência. comunicação, marketing, publicidade, jornalismo, política. crítica de cultura e idéias. assuntos quentes tratados sem assopro. bem vindo, mas cuidado para não se queimar. em último caso, bom humor é sempre melhor do que pomada de cacau.
segunda-feira, março 31, 2014
kombinationsfahrzeug: ou surpreendentemente bem bom(ou pon) em todos os sentidos
na contra-mão do modorrento panorama publicitário criativo brasileiro atual, com seus achaques e afetações, dentre eles os indefectíveis comerciais de varejo, telefonia, cerveja e automóveis - dúvida é se mais achaques ou afetações - eis que surge, soberana, uma cinquentona que resgata o que de melhor a propaganda brasileira - muito mais teve do que tem - sem por isso deixar de ser uma formulação hodierna, ainda que em sua base estejam princípios que remontam, na publicidade aos anos 60, e no produto,aos anos 40 (chupem esta antenados).
o filme de despedida da kombi é o corolário - corolário não é colírio apedeuta publicitário, mas não deixa de sê-lo - de uma ideia bem desenvolvida. vá lá, do planejamento à criação e com execução afinada e sem over.
oportunidades como esta são raras. e um dos maiores méritos da almap, e da equipe envolvida no projeto(cliente inclusive) foi de não derrapar em oportunismo, mal que assola de roldão a " mente publicitária focada na geração de negócios para salvar o negócio", que chusma por ai.responsável pela derrocada da imagem do publicitário como criador de soluções diferenciadas para resolver problemas de comunicação mercadológica - hoje eles não criam diferenciação nem para resolver os problemas deles, deles publicitários, basta ver remuneração e salários, só para saída ou seria entrada? - .
o filme poderia ser um longa, tamanha a capacidade histórica da kombi de marcar memórias e criar/participar de histórias por onde esteve/andou. vê-lo, é emocionante, enquanto comum mortal, imagino mais ainda para proprietários de kombi(mesmo os que as massacram, como kombeiros) e para publicitários demodé como eu que, tiro a minha lasquinha, como a kombi, tenho a similitude de ver pelo retrovisor muito arroubo que ficou pelo caminho).e esta emoção não uma emoção histérica ou falseada mas sim comovente pelas entranhas. principalmente pelo tour de force na locução de uma velha senhora, como somente as velhas senhoras são capazes de nos tocar, graças ao poder de nos mostrar o que somos ou o que fomos, e o que podemos ser, ou poderíamos ter sido - não sei se só eu percebo a fina ironia(ou se foi intenção dos criadores) no período do se estar surpreendentemente bem tanto ao fim quanto ao começo, linha que se perde facilmente na vida, tanto na pessoal, como na profissional e que na publicidade então, maior parte nem sequer linha torta que seja.
escrever mais sobre este trabalho é divagar sobre o talento alheio quando ele fala por si próprio e inscreve-se num patamar de importância com o fato que documenta - sim senhor, a propaganda de qualidade quando não inventa nem floreia, nem masturba, também documenta seu tempo tornando-se por isto mesmo documento histórico.
mas o principal a realçar, dentre tudo que realça, é o texto. é uma redação publicitária que arrepia - quando estava na ativa o que não arrepiava,não passava(grande, nem por isso menos insuportável, marco antônio) enquanto hoje confunde-se boca com a tampa do vaso e temos o que lemos. o copy da kombi é um texto onde tudo cumpre a sua função: nos emociona, nos faz rir delicadamente(nele a gracinha realmente tem graça/nos faz sorrir sutilmente e não gargalhar as cuspidas), nos faz refletir, nos convence, nos apaixona, e nos faz amar, o que tivemos e o que não tivemos, mas acima de tudo: o que não poderemos mais ter, muito embora as kombis, mais valorizadas do que nunca, ainda estarão soberanas quando eu e você caro leitor não estivermos mais aqui. este texto, despretenciosiamente simples, mas grandioso, nos faz sentir orgulho do produto, e da profissão, algo que deveria ser um guide line mandatory a qualquer peça. há que se dizer que o poder do texto é incomensuravelmente maior do que o da imagem - eu acredito nisto e ponto, a ponto de sacrificar empregos e oportunidades - e a maior prova disto é que este comercial só é o que é pelo texto, e pela narração sobre humana da vergueiro, cuja consubstanciação o faz não só antológico, como mitológico.
tempos virão em que gerações posteriores ao suscitar a já há muito tempo saudosa kombi - com todas as suas limitações técnicas e perigos embarcados(talvez por isso mesmo seja a kombi que é ou foi, e até hoje não tenha encontrado, em que pese tanto desenvolvimento industrial, substituta a altura, nem sequer falando do seu aplomb, item que será difícil igualar) lembra-se-ão, reviverão, conjuntamente o fato, e este comercial que de novo por seu paralelismo conceitual nos assoma o "monstro" que foi bernabach.
e talvez ai seja o segredo de quem ultrapassou o brief. para resultados grandes deve-se "pensar pequeno" - o que é diferente de pensar com a pequenez da pretensão, do ego de querer fazer-se a si maior do que o objeto da ação, da enorme confusão entre efeitos técnicos e qualidade da ideia, mal que assola os arrivistas de plantão.
e para completar a felicidade desta criação, o registro de que este é um dos raros casos,e bota raro nisso, em que o "pitaco" do cliente, um revendedor, no caso o ben pon, foi do caralho, mas do grande caralhinho mesmo!
mas o cara era holandês, não se animem;)
e dando a césar o que é de césar, a ficha técnica que se apertar também dá na kombi.
Anunciante: Volkswagen
Título: Campanha Kombi Last Edition
Produto: Kombi
Diretor Geral de Criação: Luiz Sanches
Diretores de Criação: André Kassu, Marcos Medeiros
Direção de Criação Digital: Luciana Haguiara, Sandro Rosa
Diretor de Arte: Benjamin Yung Junior, Marcelo Tolentino
Redatores: Marcelo Nogueira, Marcelo Pignatari
Fotógrafo: Fabio Bataglia
Art Buyer: Teresa Setti, Ana Cecília da Costa
Produtor Gráfico: José Roberto Bezerra
Arquitetura de Informação: Vanessa Marques, Luiz Felipe Fernandes
Diretor de Operações: Victor Groba
Gerente de Projetos: Denise Aya Kotsubo
Diretor de Produção Digital: Fernando Boniotti
Producer: Danubia Fujita
Produtora: Inkuba
Atendimento: Gustavo Burnier, Filipe Bartholomeu, José Fernando Lopes, Ana Beatriz Moreira Porto, Aline Macedo, Fernanda Portugal
Planejamento: Cintia Gonçalves, Sergio Katz, Marcus Freitas, Denis Carvalho, Tatiana Weiss, Rodrigo Friggi
Mídia: Brian Crotty, Kauê Lara Cury, Fabio Urbanas, Daniele Valle, Katia Piccardi, Stefano Justo
Aprovação: Marcelo Olival, Carlos Leite, Ana Cristina Mota e Camila Canais
sim, o óbvio, o link para o filme, que é sempre bom rever. quanto a mim dá uma saudade danada. da kombi e do que é ser publicitário(isto tinha que estar na tv aberta para matar as bactérias e vírus que se instalaram por lá.
https://www.youtube.com/watch?v=I_B4-UjQtD8
quinta-feira, março 27, 2014
en passant ou a ética e(m) seu dúbio entendimento
Há algum tempo questiono a forma como se desenvolve um posicionamento de Marca. Quando se olha só para fora e cria-se um quadrante de posicionamento, nem sempre são levados em consideração a competência essencial e os diferenciais da marca em questão. Existe uma posição a ser ocupada no mercado, mas será que a sua marca dá conta de estar ali?
Quando se olha só para dentro – e isto acontece mais do que a gente imagina – chega-se a uma definiçao que desconsidera o ambiente externo e todos os stakeholders da marca. Nao adianta construir algo de dentro pra dentro, que quase ninguém percebe o valor. Por isto, o olhar precisa ser sempre amplo, para o que a marca faz de melhor, o que faz o olho da sua equipe brilhar, o que a diferencia e como isto se coloca à serviço da sociedade.
Hoje, com um mundo altamente conectado e de altas expectativas sobre as marcas, este posicionamento, que parece estático, deve se transformar numa ética. Um código de princípios legítimo, inspirador, que se transforme em prática. Encontrei uma definição de ética de um psicanalista, que achei muito coerente – “ética são as escolhas que conseguimos bancar” - E com esta definição, fiquei muito feliz em ver duas empresas brasileiras no ranking aqui – vc viu?*
Comentários
marcelo antelo
Um ranking que aliás preza principalmente pela ironia aplicada pelo instituto de pesquisa porque incluir o BB, como empresa ética, nessas alturas do campeonato é querer fazer piada com os gringos ou tirar onda com os brasileiros! Esse Ethisphere eu não contrato nem prá pesquisa de síndico aqui do prédio!
Responder
celso muniz
tenho simpatia pelos posts da tania. mas quando, em sua felicidade, ela
inclui o banco do brasil, ai fodeu. sugiro a tania, sair do mundo web e ir para o mundo do “banco que mata velhinhas”. ou seja: compareça a qualquer agência do banco do brasil – a escolha é sua – em fim começo de mês (e não só) e veja a ética equiparar-se aos desmandos só cometidos em campos de concentração. um dos problemas da propaganda brasileira – a “superestrutura” do marketing – é ignorar a realidade, a tal ponto, que a depura em seus comerciais assépticos e ditirâmbicos, já em si um atentado à ética, como se diuturnamente o trucidamento do cidadão (cliente) - seja na agência, seja no caixa eletrônico, seja no famigerado atendimento por telefone (nem estou falando dos juros, que me fazem querer o pior dos agiotas como cunhado) não existisse; ou que deixariam de existir a base do lexotan de bordões e slogans que exaltam a falácia de tal ética. a felicidade da tania, assim sendo, é uma felicidade de pirro.
(não existe posicionamento, existe ética – reflexão da tania savaget, em direto do blue bus)
*in tempo: banco do brasil e natura, foram as duas marcas elencadas pela (sic!) ética
Quando se olha só para dentro – e isto acontece mais do que a gente imagina – chega-se a uma definiçao que desconsidera o ambiente externo e todos os stakeholders da marca. Nao adianta construir algo de dentro pra dentro, que quase ninguém percebe o valor. Por isto, o olhar precisa ser sempre amplo, para o que a marca faz de melhor, o que faz o olho da sua equipe brilhar, o que a diferencia e como isto se coloca à serviço da sociedade.
Hoje, com um mundo altamente conectado e de altas expectativas sobre as marcas, este posicionamento, que parece estático, deve se transformar numa ética. Um código de princípios legítimo, inspirador, que se transforme em prática. Encontrei uma definição de ética de um psicanalista, que achei muito coerente – “ética são as escolhas que conseguimos bancar” - E com esta definição, fiquei muito feliz em ver duas empresas brasileiras no ranking aqui – vc viu?*
Comentários
marcelo antelo
Um ranking que aliás preza principalmente pela ironia aplicada pelo instituto de pesquisa porque incluir o BB, como empresa ética, nessas alturas do campeonato é querer fazer piada com os gringos ou tirar onda com os brasileiros! Esse Ethisphere eu não contrato nem prá pesquisa de síndico aqui do prédio!
Responder
celso muniz
tenho simpatia pelos posts da tania. mas quando, em sua felicidade, ela
inclui o banco do brasil, ai fodeu. sugiro a tania, sair do mundo web e ir para o mundo do “banco que mata velhinhas”. ou seja: compareça a qualquer agência do banco do brasil – a escolha é sua – em fim começo de mês (e não só) e veja a ética equiparar-se aos desmandos só cometidos em campos de concentração. um dos problemas da propaganda brasileira – a “superestrutura” do marketing – é ignorar a realidade, a tal ponto, que a depura em seus comerciais assépticos e ditirâmbicos, já em si um atentado à ética, como se diuturnamente o trucidamento do cidadão (cliente) - seja na agência, seja no caixa eletrônico, seja no famigerado atendimento por telefone (nem estou falando dos juros, que me fazem querer o pior dos agiotas como cunhado) não existisse; ou que deixariam de existir a base do lexotan de bordões e slogans que exaltam a falácia de tal ética. a felicidade da tania, assim sendo, é uma felicidade de pirro.
(não existe posicionamento, existe ética – reflexão da tania savaget, em direto do blue bus)
*in tempo: banco do brasil e natura, foram as duas marcas elencadas pela (sic!) ética
terça-feira, março 25, 2014
pausa para o café - ou nada como o bom e velho simples para o sofisticado soar mais alto sem afetação
receita da proximity bbdo paris com o auxílio luxuoso na direçao de m.roulier e p. lhomme d´la potager - para os publicitários abobados eis a receita(do café, a criativa vão se catar) http://www.cartenoire.fr/girls-only/recette_rose.pdf
quinta-feira, março 20, 2014
é caso de dizer desta água não beberei( porquê se beber top-top) ou ai que saudade dos hippies
Agrotóxicos, metais pesados e substâncias que imitam hormônios podem estar na água que chega à torneira da sua casa ou na mineral, vendida em garrafões, restaurantes e supermercados. Saiba por que nenhuma das duas é totalmente segura.
Adicionam-se sulfato de alumínio, cloreto férrico ou outro coagulante à água. Nessa fase, a coagulação, as partículas de sujeira agregam-se (Foto: Anne Vigna)
10. 5 mil ingrediente químicos diferentes entram na composição de produtos de higiene pessoal;
89,9 % destes produtos não foram testados para saber se trazem riscos à saude.
leia matéria completa - antes de beber água ou tomar banho em http://www.apublica.org/2014/03/da-para-beber-essa-agua/
Adicionam-se sulfato de alumínio, cloreto férrico ou outro coagulante à água. Nessa fase, a coagulação, as partículas de sujeira agregam-se (Foto: Anne Vigna)
10. 5 mil ingrediente químicos diferentes entram na composição de produtos de higiene pessoal;
89,9 % destes produtos não foram testados para saber se trazem riscos à saude.
leia matéria completa - antes de beber água ou tomar banho em http://www.apublica.org/2014/03/da-para-beber-essa-agua/
terça-feira, março 18, 2014
é para e neste pais que você faz publicidade
“A escravidão venceu no Brasil. Nunca foi abolida”.
Fome, secas, epidemias, matanças: a Terra aproxima-se do apocalipse. Talvez daqui a 50 anos nem faça sentido falar em Brasil, como Estado-nação. Entretanto, há que resistir ao avanço do capitalismo. As redes sociais são uma nova hipótese de insurreição. Presente, passado e futuro, segundo um dos maiores pensadores brasileiros.
Eduardo Viveiros de Castro, 62 anos, é o mais reconhecido e discutido antropólogo do Brasil. Acha que “a ditadura brasileira não acabou”, evoluiu para uma “democracia consentida”. Vê nas redes sociais, onde tem milhares de seguidores, a hipótese de uma nova espécie de guerrilha, ou resistência. Não perdoa a Lula da Silva ter optado pela via capitalista e acha que Dilma Rousseff tem uma relação “quase patológica” com a Amazônia e os índios. Não votará nela “nem sob pelotão de fuzilamento”.
Professor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, autor de uma obra influente (destaque para A Inconstância da Alma Selvagem ou Araweté — O Povo do Ipixuna, este último editado em Portugal pela Assírio & Alvim), Viveiros de Castro é o criador do perspectivismo ameríndio, segundo a qual a humanidade é um ponto de vista: a onça vê-se como humana e vê o homem como animal; o porco vê-se como humano e vê a onça como animal. Humano é sempre quem olha.
Nesta longa entrevista, feita há um mês no seu apartamento da Baía de Botafogo — antes ainda da greve dos garis (homens e mulheres do lixo), um exemplo de revolta bem sucedida — e publicada nesse domingo pelo jornal português O Público, 16-03-2014, Viveiros foi da Copa do Mundo ao fim do mundo. Acredita que estamos à beira do apocalipse.
Eis a entrevista.
Vê sinais de uma revolta nas ruas brasileiras? Aquilo que aconteceu em 2013 foi um levantamento mas não uma revolta generalizada. Acha que isso pode acontecer antes da Copa, ou durante?
É muito difícil separar o que você imagina que vai acontecer daquilo que você deseja que vá acontecer.
Vamos separar. O que desejaria que acontecesse?
Revolta popular durante a Copa.
E isso significa o quê, exatamente?
Manifestação. Não estou imaginando a queda da Bastilha nem a explosão de nada, mas gostaria que a população carioca o deixasse muito claro. Embora a Copa vá acontecer em várias cidades, creio que o Rio se tornou o epicentro do problema da Copa, em parte porque o jogo final será no Maracanã.
Mesmo nas manifestações, o Rio foi a cidade mais forte.
São Paulo também teve manifestações muito importantes, mais conectadas com o Movimento Passe Livre [MPL, estudantes que em Junho de 2013 iniciaram os protestos contra o aumento dos transportes]. Voltando ao que eu desejaria: que a população carioca manifestasse a sua insatisfação em relação à forma como a cidade está sendo transformada numa espécie de empresa, numa vitrine turística, colonizada pelo grande capital, com a construção de grandes hotéis, oferecendo oportunidades às grandes empreiteiras, um balcão de negócios, sob a desculpa de que aCopa iria trazer dinheiro, visibilidade, para o Brasil.
O problema é que vai trazer má visibilidade. Vai ser uma péssima propaganda para o Brasil. Primeiro, porque, se estou bem entendendo, vários compromissos contratuais com a FIFA não estão sendo honrados, atrasos muito grandes, etc. Segundo, porque essa ideia de que os brasileiros estão achando uma maravilha que a Copa se realize no Brasil pode ser desmentida de maneira escandalosa se os turistas, tão cobiçados, chegarem aqui e baterem de frente com povo nas ruas, brigando com a polícia, uma polícia despreparada, brutal, violenta, assassina. Tenho a impressão de que não vai fazer muito bem à imagem do Brasil.
Outra coisa importante é que a Copa foi vendida à opinião pública como algo que ia ser praticamente financiado pela iniciativa privada, que o dinheiro do povo, do contribuinte, ia ser pouco gasto. O que está se vendo é o contrário, o governo brasileiro investindo maciçamente, gastando dinheiro para essas reformas de estádios, dinheiro dos impostos. Então, nós estamos pagando para que a FIFA lucre. Porque quem lucra com as copas é a FIFA.
Desejaria que essa revolta impedisse mesmo a Copa?
Impedir a Copa é impossível, não adianta nem desejar. Não sei também se seria bom, poderia produzir alguma complicação diplomática, ou uma repressão muito violenta dentro do país. Existe uma campanha: Não Vai Ter Copa. O nome completo é: Sem Respeito aos Direitos Não Vai Ter Copa. No sentido desiderativo: não deveria haver, desejamos que não haja.
O que se está dizendo é que os direitos de várias camadas da população estão sendo brutalmente desrespeitados, com remoções forçadas de comunidades, desapropriando sem indemnização, modificando aspectos fundamentais da paisagem carioca sem nenhuma consulta. Isso tudo está irritando a população.
Mas não é só isso: a insatisfação com a Copa foi catalisada por várias outras que vieram surgindo nos últimos anos, que envolvem categorias sociais diversas, e não estão sendo organizadas nem controladas pelos partidos. Essas manifestações têm de tudo, uma quantidade imensa de pautas [reivindicações]. Tem gente que quer só fazer bagunça, tem gente de direita, infiltrados da polícia, neonazistas, anarquistas. Um conjunto complexo de fenômenos com uma combinação de causas. Uma coisa importante é que são transversais: tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a primeira vez que isso acontece. O que talvez tenha em comum é que são todos jovens. Da classe média alta à [favela da] Rocinha.
Mas agora não são muito expressivas em termos de números. E não são as favelas que estão em massa na rua.
As famosas massas ainda não desceram, e provavelmente não vão descer durante a Copa. Nem sei se vão descer em alguma momento, se existe isso no Brasil. Mas acho que vai haver uma quantidade de pequenas manifestações. Por exemplo, a Aldeia Maracanã [pequena comunidade de índios pressionada a sair, por causa das obras do estádio] produziu uma confusão muito grande, se você pensar no tamanho da população envolvida. Os moradores daquela casa eram 14 pessoas e não obstante mobilizaram destacamentos do Bope [tropa de elite], bombas, etc. Quem está, em grande parte, criando a movimentação popular é o estado, com a sua reação desproporcional. OMovimento Passe Livre ganhou aquela explosão em São Paulo por causa da brutalidade da reação policial. O Brasil nunca teve esse tipo de confronto entre a polícia e jovens manifestantes. A polícia não sabe como reagir, não tem um método, então reage de maneira brutal. Os próprios manifestantes não têm experiência de organização. O que estão chamando de black bloc não é a mesma coisa que black bloc na Dinamarca, na Alemanha ou nos Estados Unidos.
Mais volátil.
Ideologicamente pouco consistente. Sabemos que o black bloc europeu é essencialmente uma tática de proteção contra a polícia. Noutros países, como os Estados Unidos, tem uma certa tática de agressão a símbolos do capitalismo. Aqui no Rio está uma coisa meio misturada, ainda não se consolidou uma identidade, um perfil tático claro para o que se chama de black bloc. E eles estão sendo demonizados. Acho até que, no caso do Brasil, o fato de que sejam black coloca uma pequena ponta de racismo nessa indignação. Não duvido de que no imaginário da classe média por trás da máscara negra esteja também um rosto negro. Pobres, bandidos, etc.
Mas isso está acontecendo ao mesmo tempo que a polícia continua invadindo as favelas, matando 10, 12, 15 jovens por semana. Até recentemente esse comportamento clássico do estado diante da população muito pobre, isto é, mandar a polícia entrar e arrebentar, era algo que a classe média tomava como... [sinal de longínquo].
Porque se passava lá nos morros.
Quando a violência começou a atingir a classe média — ainda que uma bala de borracha não seja uma bala de fuzil, porque o que eles usam na favela é bala de verdade e o que eles usam na rua é bala de borracha, ainda assim você pode matar com bala de borracha, pode cegar, etc —, à medida que a polícia começou a atacar tanto a rua quanto o morro houve um aumento da percepção da classe média em relação à violência da polícia nas favelas, o que é novidade. A imprensa fez uma imensa campanha para santificar a polícia com a coisa das UPP [Unidade de Polícia Pacificadora, programa para acabar com o poder armado paralelo nas favelas, instalando a polícia lá dentro], mas todo o mundo está percebendo que essas UPP são no mínimo ambíguas. Basta ver o caso do [ajudante de pedreiro]Amarildo, que foi sequestrado, torturado e morto pela polícia [em Junho de 2013, na Rocinha], e sumiu da imprensa.
Vinte e cinco policiais foram indiciados.
Quero ver o que vai acontecer. Quem deu visibilidade à morte do Amarildo não foi a grande imprensa. Foram as redes sociais, os movimentos sociais. Essa morte é absolutamente banal, acontece toda a semana nas favelas, mas calhou de acontecer na altura das manifestações, então foi capturada pelos manifestantes, o que produziu uma solidariedade entre o morro e a rua que foi inédita.
Num país como este, em que a desigualdade, a violência, continuam, porque é que as massas não saem?
Quem dera que eu soubesse a resposta. Essa é a pergunta que a esquerda faz desde que existe no Brasil. Acho que há várias razões. O Brasil é um país muito diferente de todos os outros da América Latina, por exemplo da Argentina. Basta comparar a história para ver a diferença em termos de participação política, mobilização popular.
Tenho impressão de que isso se deve em larga medida à herança da escravidão no Brasil. O Brasil é um país muito mais racista do que os Estados Unidos. Claro que é um racismo diferente. O racismo americano é protestante. Mas no Brasil há um racismo político muito forte, não só ideológico como o americano, interpessoal. O Brasil é um país escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é escravocrata.
Você vê o caso do menino [mulato] amarrado no poste [no bairro do Flamengo, por uma milícia de classe média que o suspeitava assaltante] e que respondeu de uma maneira absolutamente trágica quando foi pego: mas meu senhor, eu não estava fazendo nada. Só essa expressão, “meu senhor”... O trágico foi essa expressão. Continuamos num mundo de senhores. Porque o outro era branco.
Como um DNA, algo que não acabou.
Não acabou, pois é. É o mito de que no Brasil todas as coisas se resolvem sem violência. Sem violência, entenda-se, sem revolta popular. Com muita violência mas sem revolta. A violência é a da polícia, do estado, do exército, mas não é a violência no sentido clássico, francês, revolucionário.
E toda a vez que acontecem coisas como essas manifestações de junho, por exemplo, há aquela sensação: dessa vez o morro vai descer. O morro não desceu. Em parte porque já não é mais o morro, boa parte do morro é de classe média. Evidentemente, houve um crescimento económico. As favelas da minha infância, nos anos 50, eram completamente diferentes, como essas vilas da Amazônia, feitas de lona preta. Hoje são casas de alvenaria, feitas de tijolos. Ainda assim a miséria continua. Quero dizer apenas que a distância entre a classe média e o morro diminuiu do ponto de vista económico.
Ao fazer ascender esses milhões da miséria, o PT neutralizou a revolução?
Em parte pode ser isso. Houve uma espécie de opção política forçada do PT, segundo a qual a única maneira de melhorar a renda dos pobres é não mexer na renda dos ricos. Ou seja, vamos ter que tirar o dinheiro de outro lugar. E de onde é que eles estão tirando? Do chão, literalmente. Destruindo o meio ambiente para poder vender soja, carne, para a China. Não está havendo redistribuição de renda, o que está havendo é aumento da renda produzida pela queima dos móveis da casa para aquecer a população, digamos. Está um pouquinho mais quente, não estamos morrendo de frio, mas estamos destruindo o Brasil central, devastando a Amazônia. Tudo foi feito para não botar a mão no bolso dos ricos. E não provocar os militares.
A ditadura brasileira não acabou. Nós vivemos numa democracia consentida pelos militares. Compare com aArgentina: porque é que no Brasil não houve julgamento dos militares envolvidos na tortura? Porque os militares não deixam. Vamos ver o que vai acontecer agora, no dia 1 de Abril.
Com o aniversário do golpe militar.
Já existe uma campanha aí, subterrânea, para que no dia 31 de Março apaguem-se as luzes, toquem-se buzinas, para comemorar o 50º aniversário do golpe. Ou seja, existe uma campanha da direita para mostrar que a população ainda apoia a direita. Não sei que sucesso vai ter, mas não duvido que haja uma manifestação, oculta, pessoas que vão apagar as luzes das suas casas ou piscar as luzes à meia-noite, alguma coisa assim.
Mas nenhuma possibilidade de viragem à direita.
Não creio.
O atual regime não é uma democracia?
O Brasil é uma democracia formal, claro, mas consentida pelo status quo. A abertura foi permitida pelos militares. ALei da Anistia foi imposta tal qual pelo governo militar. Eles não foram destronados, presos, criminalizados. Simplesmente foram anistiados. E boa parte do projecto de desenvolvimento nacional gestado durante a ditadura militar está sendo aplicado com a maior eficiência.
Pela esquerda.
Pela chamada esquerda, pela coalisão que está no poder, na qual a esquerda é uma parte mínima, porque tem os grandes proprietários de terra, os grandes empresários.
Está cumprindo um ideário que vem da ditadura?
O PT é um partido operário do século XIX. Eles têm um modelo que é indústria, crescimento, como se o Brasil fosse os Estados Unidos do século XXI. Com grande consumo de energia. Uma concepção antiga, fora de sintonia com o mundo atual. Agora está começando a mudar um pouco, mas a falta de sensibilidade do governo para o fato de que o Brasil é um país que está localizado no planeta Terra, e não no céu, é muito grande. Eles não percebem. Acham que o Brasil é um mundo em si mesmo.
Ou seja, que não vai ser afetado pelo aquecimento global, etc.
É, que todas essas coisas são com os outros. Um pouco como acontece nos Estados Unidos, em países muito grandes. A única visão global que o Brasil tem é de se tornar uma potência geopolítica. O Brasil, hoje, é um ator maior, de primeira linha, em Moçambique, em Angola, nos países latino-americanos. Está disputando com a China pedaços de Moçambique. A Odebrecht está construindo hidroeléctricas [barragens] em Angola e assim por diante. O Brasil se imagina como potência que vai oprimir. Agora é a vez de sermos opressores, deixarmos de ser os oprimidos. Agora os brasileiros da vez vão ser os haitianos, os bolivianos, os paraguaios, que trabalham nas “sweetshops” de São Paulo, nas terras em que plantamos soja e etc. O PT nunca foi um partido de esquerda. É um partido que procurava transformar a classe operária numa classe operária americana.
E nunca o Brasil foi um país tão capitalista.
Minha mulher me contou que, conversando com um desconhecido, operador da bolsa de valores, isto em 2007, 2008, ele dizia: se eu soubesse que ia ser tão bom para nós jamais teria votado contra o Lula.
Onde está a esquerda? Qual é a sua opção de voto? Ou a opção deixou de ser votar?
Tanto a esquerda como a direita são posições políticas que você encontra dentro da classe média. A classe dominante é de direita de maneira genética, a grande burguesia, o grande capital. E os pobres, a classe trabalhadora... se eu fosse fazer um juízo de valor um pouco irresponsável diria que 60 a 70 por cento do Brasil estaria muito feliz com um governo autoritário, que desse dinheiro para comprar geladeira, televisão, carro, etc. Uma população que tem uma profunda desconfiança em relação a esses jovens quebradores de coisas na rua, que seria a favor da pena de morte, que é violentamente homofóbica.
Depois do garoto do Flamengo ter sido amarrado por aquela milícia, ouvi trabalhadores negros pobres dizerem: tem mais é que botar bandido na cadeia, fizeram foi pouco com ele.
Ou seja, é um país conservador, reacionário, em que os pobres colaboram com a sua opressão. Não todos, mas existe isso. A escravidão venceu no Brasil, ela nunca foi abolida. Sou muito pessimista em relação ao Brasil, digo francamente. Em relação ao passado e ao futuro. Em relação ao passado no sentido de que é um país que jamais se libertou do ethos, do imaginário profundo da escravidão, em que o sonho de todo o escravo é ser senhor de escravos, o sonho de todo o oprimido é ser o opressor. Daí essa reação: tem mais é que botar esses caras na cadeia. Em vez de se solidarizar. E podia ser o filho dele facilmente. E às vezes é o filho dele.
Oswald de Andrade, o poeta, dizia: “O Brasil nunca declarou a sua independência.” Em certo sentido é verdade, porque quem declarou a independência do Brasil foi Portugal, um rei português. Eu diria: e tão pouco aboliu a escravidão. Porque quem aboliu a escravidão foi a própria classe escravocrata. Não foi nenhuma revolta popular, nenhuma guerra civil. E em relação ao futuro sou pessimista porque... talvez ainda tenha um pouco de esperança, mas acho que o Brasil já perdeu a oportunidade de inventar uma nova forma de civilização. Um país que teria todas as condições para isso: ecológicas, geográficas.
Uma espécie de terceira via do mundo?
É, outra civilização. Porque civilização não é necessariamente transformar um país tropical numa cópia de segunda classe dos Estados Unidos ou da Europa, ou seja, de um país do hemisfério norte que tem características geográficas e culturais completamente diferentes.
Lembremos que houve um projeto explícito no Brasil, e que deu certo, que está dando certo, por isso é que sou pessimista, que é o projeto iniciado com Pedro II, em parte inspirado pelo célebre teórico racista Gobineau, que era uma grande admiração de D. Pedro: o Brasil só teria saída mediante o braqueamento da população, porque a escravidão tinha trazido uma tara, uma raça inferior.
Havia que lavar o sangue.
É uma ideia antiga, que já vem dos cristãos-novos que vieram de Portugal, que tinham de limpar o sangue. A gente sabe que quase toda a população portuguesa que se instalou no Brasil é de cristãos-novos, Diria que 70 por cento desses brancos orgulhosos de serem brasileiros são judeus, marranos, convertidos a ferro e fogo pela Inquisição. Então, havia essa ideia de que o Brasil era um país racialmente inferior porque era composto de negros, índios, portugueses com essa origem um pouco duvidosa. E já Portugal em si não é...
A Holanda.
Exato. Não é a coisa mais branca que podemos encontrar na Europa. A Península Ibérica é um pouco africana, foi dominada 800 anos pelos árabes. Então o Brasil só ia melhorar com branqueamento. Isso foi uma política de estado que durou décadas e trouxe para o Brasil milhões de imigrantes alemães, italianos, mais tarde japoneses. Com o propósito explícito de branquear, não só geneticamente, mas culturalmente e economicamente. E eles foram para o Sul, de São Paulo até ao Rio Grande. Mas, esse que é o ponto curioso, a partir do governo militar para cá essa população branca invadiu o Brasil, a Amazônia. A colonização da Amazônia a partir da década de 70 foi feita pelos gaúchos, muitos deles pobres, que foram expulsos, alemães pobres, italianos pobres, cujas pequenas propriedades fundiárias foram absorvidas pelos grandes proprietários, também gaúchos, também brancos, e que foram estimulados pelo governo, com subsídios, promessas mirabolantes, a irem para a Amazônia.
Hoje, tem um cinturão de cidades no sul da Amazônia com nomes como Porto dos Gaúchos, Querência, que é um lugar onde se guarda o gado, típico do Rio Grande do Sul. Os gaúchos [de origem europeia] chegaram numa região temperada, subtropical [sul do Brasil] em que você podia mais ou menos copiar um tipo de estrutura agrícola, de produção alimentar do país de origem. Só que na Amazônia isso é uma abominação. É um preconceito muito difundido essa ideia de que pessoal do Norte não sabe trabalhar, é preguiçoso. Você ouve muito isto no Paraná, noRio Grande do Sul. Quem sabe trabalhar é o colono alemão, italiano.
Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura country aí é uma mistura de cultura europeia com cultura americana, de grande carrão, 4x4, pick ups, rodeos, chapéus americanos, botas. Existe um projeto de transformar o Brasil num país culturalmente do hemisfério norte, seja Estados Unidos, seja essa Europa mais reacionária. Porque estamos falando de colonos alemães que vieram do campesinato reacionário, bávaro, pomerano, e dos camponeses italianos, que eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II Guerra. Continuam sendo. O que tem de grupo de extrema-direita no sul do Brasil é muito. O foco da direita fascista, nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul. Então o Brasil é um país dividido entre um sul branco e o resto não branco, português, negro no litoral, índio no interior.
O censo da população dá por uma unha uma maioria não-branca.
O agronegócio é na verdade o modelo gaúcho, desenvolvido no pampa, nos campos do Rio Grande. Plantação extensa de monocultura, de soja, de arroz, de cana. Então o Brasil está perdendo a oportunidade de se constituir como um novo modelo de civilização propriamente tropical, com uma nova relação entre as raças, que fosse efetivamente multinacional. Um país que se constituiu em cima do genocídio indígena, da escravidão, da monocultura. Que continua fazendo o que fez desde que foi criado, exportando produtos agrícolas. Que continua a alimentar os países industrializados. Primeiro a Europa, depois os Estados Unidos, agora a China. Continua sendo o celeiro do capitalismo.
E o matadouro.
O segundo maior rebanho bovino do mundo, depois da Austrália. Um país que se está destruindo a si mesmo para se transformar numa caricatura dos países que lhe servem de modelo cultural. Em vez de, ao contrário, saber utilizar a sua situação geográfica altamente privilegiada, a sua situação demográfica, uma população imensa, para construir um novo estilo de civilização.
O senhor está descrevendo a derrota do “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade [visão de um Brasil que se torna forte por comer, absorver o outro]
É, acho que sim. Bom, nenhuma derrota é definitiva. O meu pessimismo nem passa tanto pelo fato de que o Brasil não tem jeito, porque acho que ainda poderia haver uma revolução antropofágica no Brasil. Mas hoje isso é uma questão que já não teria mais sentido colocar pelo simples fato de que estamos numa situação planetária em que a catástrofe já se iniciou. O mundo está entrando, num sentido físico, termodinâmico, num outro regime ambiental que vai produzir catástrofes humanas jamais vistas, no meu entender: fome, epidemias, secas, mudança de regime hidrológico, tudo. Nessas circunstâncias, é possível que cheguemos a um momento em que noções como Brasil, Estados Unidos, países, comecem a perder a sua nitidez. Pode ser que daqui a 50 anos a palavra Brasil não tenha mais nenhum sentido. Que tenhamos que falar em Terra.
É um pré-apocalipse?
Dira que sim. Isabelle Stengers, filósofa belga, diz que a palavra crise não é adequada porque supõe que você pode superá-la, quando o que estamos vivendo é uma situação que não tem um voltar atrás. Vamos ter que conviver com ela para sempre. Um novo regime do mundo, de climas, de águas, não haverá mais peixes, os estoques estão acabando no mundo, a quantidade de refugiados que vão invadir a Europa vai ser brutal nas próximas décadas. Se a temperatura subir quatro graus, que é o que todos os climatologistas estão imaginando, isso vai produzir uma mudança total no que é viver na Terra. E a quantidade de africanos que vai invadir a Europa vai ser um pouco maior do que aqueles pobres que morrem afogados ali em Lampedusa. E como os países ricos vão reagir? É uma questão interessante. Vai ser com armas atômicas? Vão bombardear quem? O meu pessimismo passa mais por aí.
No Brasil as crises são estritamente políticas. Faz reforma política? Vai ter revolta da população? Será que há Copa? Tudo isso é verdade, fundamental, mas a gente não pode perder de vista o cenário mais amplo.
Não vê ninguém no Brasil, politicamente, que tenha uma visão ampla? O senhor votou na Marina Silva [nas últimas presidenciais].
Votei na Marina em 2010, com certeza. Não tenho certeza nenhuma de que votaria nela em 2014, talvez não.
Eduardo Campos [candidato pernambucano que fez uma aliança com Marina]?
De forma nenhuma. A Dilma, nem sob pelotão de fuzilamento voto nela. Esses idiotas do PSDB nem pensar. Então talvez eu não vote. Talvez vote nulo.
Qual é a missão, o papel, a hipótese para alguém como o senhor? Virar uma espécie de guerrilheiro nas redes sociais?
É. Eu diria que a revolução antropofágica do Oswald de Andrade só é possível sob o modo da guerrilha. Estamos falando de uma coisa que foi pensada em 1928...
Mas que foi revivendo, anos 60, agora.
O Oswald, um homem da classe dominante, pensava no Brasil como uma coisa sobre a qual você podia pôr e dispor. Nesse sentido, ele pertence à geração dos teóricos do Brasil, que eram todos da elite dominante paulistana ou pernambucana: Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior. Os modernistas eram uma teoria do Brasil, de como o Brasil deve ser organizado, governado.
Talvez os muitos povos brasileiros que compõem esse país só tenham chance de ganhar uma certa emancipação cultural, política, metafísica, no contexto do declínio geral do planeta. Nessas condições é possível que haja esperança para os negros, os índios, os quilombolas [descendentes de escravos], os gays, os pobres desse planeta favela. Não esqueçamos que o mundo tem três bilhões e meio de habitantes vivendo em cidade, metade da população mundial. Desses, no mínimo um bilhão vive em favelas. Ou seja, um sétimo da população mundial vive em favelas. O Brasil deve ter uma proporção maior que a Alemanha, Estados Unidos. Diria que deve andar na casa dos 30 milhões. [A população de] um bom país europeu.
Seria uma guerrilha nas redes sociais? Admite o uso de violência ou uma guerrilha virtual apenas?
Nem uma coisa nem outra. A existência da Internet mudou as condições da guerra, em geral, sim. O maior ato de guerra recente, no bom sentido, de que me consigo lembrar foi o Edward Snowden. Não mais os Estados Unidos espionando a Rússia, nem a Rússia espionando os Estados Unidos, mas o vazamento de informações secretas dos estados. Isso é muito significativo. Um jornalista morando aqui no Rio de Janeiro, que trabalha para um jornal inglês, que recebeu informações de um analista americano, que estava escondido em Hong Kong: isso só é possível com Internet. As redes sociais mudaram completamente as condições de resistência ao capitalismo.
Uma nova forma de guerrilha?
Que não é nececessariamente violenta, embora exista o problema do hacker, do bombardeio de sistema eletrônico. Mas o que penso não é bem por aí. Quando penso em guerrilha, é no sentido de combates locais, ponto a ponto. Não estou falando de quebrar a porta do banco ou bater na polícia. Falo em combates em que você seja capaz de conectar combates locais através do mundo inteiro.
Existem formas novas de resistência e aliança entre as minorias étnicas, culturais, econômicas do planeta que passam pela conectividade universal da rede, que é frágil, ao contrário do que se imagina, com pontos fracos, nós, gargalos, em que os Estados Unidos têm um poder muito grande. Mas eu diria que é muito difícil controlá-la até porque essa rede é indispensável para o capitalismo. Difícil o capitalismo danificá-la demais, senão vai perder seu principal instrumento hoje. Ainda que haja várias tentativas, no Brasil inclusive, de vigilância.
É possível que a gente passe para um estado de vigilância à la George Orwell. Tudo isso é possível. Mas acho também que a situação atual permite o desenvolvimento de uma guerrilha de informação, muito mais que de ação física, porque a informação hoje é uma mercadoria fundamental, estamos na economia do conhecimento, então a guerra é uma guerra também pela informação. É por aí que tenho alguma esperança, muito mais que numa saída nas ruas, com ancinhos, forcados, machetes.
Parar de imaginar uma luta de classes e imaginar uma guerrilha de classes. Classe definida, agora, não só de maneira classicamente econômica mas no contexto da nova economia, que mudou a composição de classes. Vários intelectuais hoje pertencem à classe dominada, operária. Então, vejo mais uma guerrilha do que uma guerra, com a vantagem de que as guerras em geral terminam na constituição de um novo poder totalitário, um novo terror. O “Manifesto Antropófago” pode acabar se realizando mais por esse lado. O sonho clássico da revolução, como transformação de um estado A em estado B é um sonho pouco interessante.
Não há desfecho.
Não há desfecho. Prefiro falar em insurreição do que em revolução, hoje. Um estado de insurreição permanente como resistência. A palavra talvez seja mais resistência, insurreição, do que revolução e guerra. Guerrilha é sempre de resistência. O modelo da resistência francesa [na ocupação alemã], criar redes subterrâneas de comunicação. Estamos nessa posição, somos um planeta invadido por alienígenas, digamos, que é o grande capital, a TV Globo, o agronegócio, a hegemonia norte-americana sobre os sistemas de entretenimento; como é que você cria uma rede de resistência a esses “alemães”? Sou um ativista das redes, de fato. Mas não convoco para manifestações, não pertenço a nenhuma organização, estou um pouco velho para sair na rua.
( Nota: A imagem que ilustra a reportagem é de Déborah Danowski).(publicado no ihu on-line)
sexta-feira, março 14, 2014
"formol"-se em publicidade? bem feito. é isto que te espera
foto legenda: washington segurando o queixo ao saber do piso pago pela profissão que ele ajudou(e muito) a engrandecer, mas que hoje também ele paga pra colocá-la pra baixo |
Empresa em Recife, precisa de Redator. Interessados devem enviar currículo e portfolio para curriculos44@gmail.com
Requisitos:
Superior Completo em Publicidade ou Jornalismo.
Superior Completo em Publicidade ou Jornalismo.
Atividades:
Redigir textos para mídias online e off-line (banner, newsletter, mídia impressa);
Redigir textos publicitários e campanhas, realizar correções ortográficas e semânticas em textos em geral.
Redigir textos para mídias online e off-line (banner, newsletter, mídia impressa);
Redigir textos publicitários e campanhas, realizar correções ortográficas e semânticas em textos em geral.
Salário: R$ 1.640,00
Benefícios: Assistência Médica, Assistência Odontológica, Participação nos lucros, Tíquete-alimentação, Vale-transporte
Regime de contratação: CLT (Efetivo)Horário: 8h às 18h - 44h semanais, segunda a sexta
Regime de contratação: CLT (Efetivo)Horário: 8h às 18h - 44h semanais, segunda a sexta
misterwal observa: e ainda vai ter de bater ponto. é ou não é a vereda tropical da realização profissional pessoal profissional?
não é à toa que: quem tem vergonha na cara, envergonha-se de ser publicitário. e quem não, também : pelo salário sem cara). isto posto, não se pode criticar a neura concurseira que se instalou na geração diploma, não é mesmo? aliás no caso de muitos deles, até parecem os publicitários de outrora, com um "passo adiante": porque além de faturar uma bolada, na enorme maioria dos casos ninguém aparece (fisicamente, eles não são publicitários) no trabalho.
e por falar nisso, pelo menos a gente ia. e aparecia e trabalhava pra caralho.ninguém reclamava, nem das viradas, porque se divertia, e tinha um puta salário para isso: pra misturar diversão com trabalho e vice-versa.
enfiando o dedão na ferida, você acha que publicitário de agora se diverte? ah! tá bom, fica combinado assim. e aí onde vai ser a outra jornada de trabalho? dilema dos antenados: como vou comprar i-phode com um salário destes ? só roubando ou dando: ou tendo mamãe e papai que roubam ou dão pra você meu filho. até porque, por mais fake que seja seu salário, seu título, e seu local de trabalho(tem gente que tem coragem de chamar da agência ou qualquer coisa em outra língua) publicitário que se preza não larga a maça original por maior que seja a infestação de minhocas chinesas.
in tempo: a fonte é o gogojob, onde emprego pulha acha-se às tulhas.
terça-feira, março 11, 2014
o artigo é longo? é. mas você não teve fôlego para pular o carnaval inteiro? então leia inteiro e descubra a origem do enredo, onde você comemora o fato de ser estropiado por inteiro o ano inteiro
E eis que, em março de 2014, trabalhadores brasileiros, na condição mesma de trabalhadores garis, resolvem se apresentar na festa do carnaval.
1. O contexto histórico
A ideia de um país do Carnaval surge, na década de 30, com o propósito varguista de construir uma identidade nacional, buscando enaltecer o que o brasileiro tinha de próprio e positivo, deixando de revelar, no entanto, o objetivo em torno da formatação de uma sociedade capitalista, que pressupunha a constituição de uma nova classe operária com esse brasileiro, um sujeito naturalmente ordeiro e pacífico, e que, com a evolução dos tempos, embora ainda festivo e alegre, se apresentava como disciplinado e trabalhador, uma espécie de malandro regenerado, que portava virtudes religiosas e propensão ao casamento, pronto, portanto, para se integrar ao projeto de enriquecimento da Nação, contrariamente aos operários estrangeiros, que portavam ideias perniciosas à ordem brasileira.
O Carnaval, como veículo de aproximação com o povo, seria apropriado para que se fizesse um elogio de valores que interessavam ao governo.
Mas, como observa Eliana de Freitas Dutra, “Ainda assim, o carnaval popular seguiu sua trilha de riso, deboche e alegria na animada capital da República. Tributário de outras festas populares, como a Festa da Penha, o Carnaval conservou a herança dos ritmos trazidos da África pelos escravos, levados para essa festa popular religiosa. Os sambas de roda vindos da Bahia, tendo sobrevivido nos terreiros de samba, também migraram para o Carnaval, que ocupava locais como a Praça Onze, onde se divertiam as gentes dos subúrbios e desfilavam os blocos de sujos, os mascarados e os zé-pereiras, com seus tambores e bombos.” [1]
Mesmo com toda propaganda, a música de boa parte de sambistas continuou se desenvolvendo, isso porque estava envolto em um dado cultural mais profundo, tendo sido integrado ao cenário das cidades, ecoando, também, o grito de liberdade dos ex-escravos. “A musicalidade circunscrita ao latifúndio – em si, expressão acabada de um documento de barbárie –, ao se libertar com a Abolição, invade a cidade: um grito ecoa pela Nação, animando a festa (carnaval), embriagando a atmosfera urbana com uma música popular envolvente, de grande ressonância nas diversas nervuras da sociedade.”[2]
No samba, os protagonistas, vítimas da divisão escravista do trabalho, repudiam o trabalho explorado, promovendo uma inversão, onde “o operário é a principal personagem à sombra, ofuscado pela ruidosa e alegre consagração da figura do malandro.”[3]
O Carnaval, assim, é uma festa que impõe a desordem num ambiente em que a ordem segrega. É a busca de outra ordem, outra harmonia, o que foi difundido, magistralmente, por Noel Rosa, seguindo a trilha traçada por João da Baiana, Donga, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha, sendo acompanhado no nordeste por Jackson do Pandeiro, em São Paulo, por Adoniram Barbosa e, no Rio, por Moreira da Silva, introdutor do breque, “um dos recursos mais maliciosos da canção brasileira, portador de distanciamento irônico” [4] e que proclamou: “Estou cansado dessa vida de otário/Afinal o meu salário já não chega para mim”.
Noel Rosa, que assumiu a postura de vida boêmia, percebeu bem a supressão do humano pelo trabalho fabril, que se procurava então estimular, como revelado em Três Apitos, de 1933:
Quando o apito da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Ou está interessada
Em fingir que não me vê
Você que atende ao apito de uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina do meu carro
Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé no agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você
Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente
Impertinente
Que dá ordens a você
Sou do sereno poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe porque
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto ao piano
Estes versos pra você
O problema é que na relação simbiótica entre sambistas e governo este aprendeu a se valer do “jogo de cintura” para dissimular, propositalmente, a realidade, apropriando-se da cultura da malandragem. Ou seja, promovendo aquilo que se poderia chamar de uma “malandragem oficial” e ao longo dos anos, submetendo o malandro do povo ao estágio extremo da necessidade e da marginalidade, impondo-lhe não apenas a miséria, mas também, repressão institucionalizada, que se intensificou no período da ditadura civil-militar de 1964 em diante, e acabou por manter-se como a única malandragem possível no cenário nacional, como denunciado por Chico Buarque, em 1977-1978, na música, Homenagem ao malandro, feita para a sua peça, Ópera do Malandro:
Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
- não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
Em suma, o Carnaval se institucionalizou e mais tarde passou a ser objeto importante da lógica da produção capitalista e a classe operária brasileira, voltada a um trabalho cujo proveito não lhe permite concreta ascensão social, foi forjada e expulsa do domínio ideológico das festas populares.
Tudo isso se fez, no entanto, dentro da característica da cultura do disfarce, que restou, concretamente, como o caldo cultural do período. A institucionalização estatal da malandragem, além disso, foi incorporada pela classe dominante, fazendo com que as relações sociais se desenvolvessem na perspectiva da dissimulação. É comum, pois, no percurso histórico, verificar a classe dominante proferindo discursos sobre questões sociais, partindo de seu modo de ver o mundo, mas fazendo-o de tal forma que pareça estar, meramente, reproduzindo os interesses da classe dominada. E, não raro, utilizando-se dos meios de comunicação em massa, faz com que essa sua racionalidade seja posta nas falas dos trabalhadores e excluídos em geral.
É assim, por exemplo, que se tenta fazer crer que os direitos sociais são prejudiciais aos seus titulares, por serem artificiais, já que a natureza das coisas é determinada pelas possibilidades econômicas, que não podem ser alteradas já que o “status quo” precisa ser preservado, e que, de fato, deixar de aplicar os direitos é um benefício que se faz em prol do bem-estar dos trabalhadores. Utilizam, pois, da estratégia básica da malandragem, que é se apropriar da dialética entre ordem e desordem, pervertendo a regra do jogo e alterando até mesmo a perspectiva do outro.
O capitalismo amadureceu no Brasil por esses fatores, tendo sido criado um exército de mão-de-obra para satisfazer as necessidades da reprodução do capital, atendendo, inclusive, interesses econômicos internacionais, mas sem permitir a percepção dessa mudança, mantendo-se a visão do Brasil como o país da natureza abundante, onde tudo que se planta dá, que não está integrado por classes, que conta com um povo coeso e harmônico, de convivência pacífica, numa lógica corporativa, mesmo que não exista e se leve adiante um projeto de sociedade, imperando, em concreto, a ideologia do individualismo e do liberalismo.
Um país que se apresenta formado por pessoas pacíficas, ordeiras, tementes a Deus, felizes e irreverentes, mas que, em concreto, se desenvolve por intermédio de separação de classes com profunda desigualdade, que reverbera valores como o racismo e o machismo, e que se mantém por meio da violência institucionalizada, tratando como desajustados, marginais, os que tentam relevar e superar as injustiças sociais e as dissimulações em que a “ordem” se funda.
Um país no qual a ordem jurídica, que garante valores como a dignidade e a justiça social, chegando ao ponto de vincular o direito de propriedade ao cumprimento de sua função social, é apresentada como obra-prima da racionalidade, mas, que, nem de longe, enfrenta o desafio de atingir, em concreto, a realidade. As leis trabalhistas, por exemplo, foram criadas, mas nunca com o propósito real de serem aplicadas...
A violência da preservação das desigualdades se produz, repetidas vezes, por formas veladas, tentando fazer crer que toda busca de alterar a realidade social representa a instalação do caos, uma forma de quebrar a harmonia entre as classes, fazendo-se supor a felicidade de quem está sendo explorado e para quem, inclusive, faz bem continuar sendo explorado, mesmo com supressão de direitos.
O ataque recorrente que se faz à legislação trabalhista se insere neste contexto.
Ora, os ataques partem exatamente daqueles que mais se beneficiam da legislação em questão, eis que serve para manter sob controle a classe operária, evidenciando, pois, uma atitude dissimulada, esperta, para se opor, de antemão, a possíveis reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de trabalho, constituindo ao mesmo tempo, de forma até contraditória, a falência entre nós de uma racionalidade liberal, deixando transparecer, mesmo sem querer, o resquício escravista e a lógica oligárquica. É como se dissessem: “Direito ao vagabundo, prá quê?”
2. O fato e o direito
E eis que, em março de 2014, trabalhadores brasileiros, na condição mesma de trabalhadores, garis, resolvem se apresentar na festa do Carnaval e o fazem da maneira que pode, fazendo greve.
E o que se viu em reação? Bom o que se viu foi o reflexo de toda essa história da institucionalização esperta da exclusão.
Anunciada a intenção dos garis em fazer greve, para auferir melhores condições de trabalho, o sindicato e o empregador se anteciparam e fizeram um acordo, em 03 de março. Esse acordo, segundo afirmam os garis, foi bem aquém das pretensões da categoria. Os garis resolveram, então, deliberar pela greve e tiveram que fazê-lo sem a presença do sindicato, o qual já havia se posicionado sobre o tema.
A partir daí o que se viu foi a utilização de todo o aparato estatal para destruir os trabalhadores, até o ponto de alguns deles terem sido chamados de “marginais e delinqüentes” pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro.
Ora, enquanto os garis se submetem a trabalhar, realizando uma atividade extremamente dura, durante várias horas por dia, ganhando R$803,00 por mês, chacoalhando nos trens da Central, são considerados cidadãos ordeiros, pacíficos, virtuosos. Alguns desses, inclusive, como se anunciou, trabalham como gari há 30 (trinta) anos. Mas, se resolvem se valer da ocasião do advento do Carnaval para pressionar o empregador, visando mudar um pouco a sua “sorte” na vida, são espertalhões, “chantagistas”, como afirmou o presidente da COMLURB.
Os garis, então, ao se revelarem como trabalhadores, com consciência de classe, deixando de ser figuras alegóricas, espécies de balões de ensaio para estudos antropológicos, tiveram a oportunidade de perceber a forma concreta como o Estado, na qualidade de empregador, se relaciona com trabalhadores.
O Estado se recusou a conversar e impôs aos garis, por efeito de uma estratégia jurídica, a volta ao trabalho. Com a recusa, tratou, imediatamente, de “dispensar”, “mandar embora”, os garis, fazendo-o por meio de mensagem pelo celular. A tecnologia a serviço da perversidade. E foi além. Foram utilizados dispositivos, em desuso, do Código Penal, pertinentes aos crimes contra a organização de trabalho, instituídos, não por acaso, durante o Estado Novo, para prender dirigentes sindicais que estavam tentando se opor que colegas furassem a greve.
Com relação à ação dos garis trabalhadores o Estado agiu rapidamente, mostrou eficiência, utilizando-se dos instrumentos e instituições jurídicas à sua disposição para a retomada da ordem, chegando a conduzir trabalhadores à prisão, sob a pecha de “marginais”. Mas, esse mesmo Estado não foi eficiente para, primeiro, negociar de boa-fé com os garis e não consta que tenha demonstrado a mesma eficiência quando os direitos dos trabalhadores, em geral, deixam de ser respeitados por alguns empregadores, que insistem em se valer da ilicitude para frustrar a concorrência e majorarem, indevidamente, os seus lucros.
No mesmo caderno do Jornal que traz a notícia da greve dos garis, pondo em destaque um grande foto do lixo nas ruas e a prisão dos “marginais”, há uma nota, pequena, que informa: “90 mil crianças estão à espera de vaga em creche em SP”. Claro que se trata de outro Estado da Federação. O que se está dizendo, e os exemplos seriam inúmeros para ilustração, é que a eficiência do Estado para reprimir o cidadão que luta por direitos, visando à melhoria de sua condição social, é inversamente proporcional quando o assunto é a concretização dos direitos sociais assegurados, constitucionalmente, a esses mesmos cidadãos.
E, juridicamente falando, está tudo errado.
Primeiro, o acordo, para ter validade jurídica precisava ter sido submetido à assembleia dos trabalhadores, já que o preceito democrático é o que rege, fundamentalmente, nosso Estado de Direito. Essa, ademais, é a previsão expressa do artigo 612, da CLT: “Os sindicatos só poderão celebrar Convenções ou Acordos Coletivos de Trabalho, por deliberação de Assembleia Geral especialmente convocada para esse fim, consoante o disposto nos respectivos Estatutos, dependendo a validade da mesma do comparecimento e votação, em primeira convocação, de 2/3 dos associados da entidade, se se tratar de Convenção, e dos interessados, no caso de Acordo, e, em segunda, de 1/3 dos mesmos.”
No caso da greve, ainda que dependa do sindicato para ser deflagrada, não se pode negá-la como fato social, respaldado pelo direito, quando haja distensão notória entre os trabalhadores e a direção do sindicato, até porque é dever das entidades de representação, dado o preceito democrático, convocar assembleias para deliberações, sendo que a greve, nos termos da lei, concretamente, não está condicionada ao direcionamento da diretoria e sim à vontade da categoria expressa em assembleia geral, “que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços”, sendo certo também que, por ilação lógica, somente a assembleia pode decidir pelo fim da greve (art. 4º., da Lei n. 7.783/89).
O acordo feito pela direção do sindicato não vincula, portanto, a categoria. E, vale reforçar: ainda que a greve se exerça por meio do sindicato, o direito de greve não pertence ao sindicato, como revela, expressamente, o artigo 9º., da CF, reproduzido, ipsis literis, no art. 1º., da Lei n. 7.783/89: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.” (grifou-se)
Ao que consta, assembleia dos trabalhadores, mesmo não tendo sido chamada pelo sindicato, rejeitou o acordo e deliberou pela greve, não havendo, portanto, ilegalidade alguma no ato dos trabalhadores de deixarem de comparecer ao trabalho depois disso, pois essa é, de fato, a essência da greve, qual seja, a paralisação do trabalho.
Desse modo, a atitude do prefeito do município do Rio de Janeiro ao determinar a “dispensa” de trabalhadores, fazendo-o ainda da forma vexatória como o fez, ou seja, por envio de mensagem pelo celular, configura uma flagrante ilegalidade, além de ser uma agressão à condição humana e jurídica dos trabalhadores, atitude que, adotando a própria lógica argumentativa trazida à tona pelo prefeito, pode ser enquadrada como ato de “marginal ou delinquente”, vez que em desrespeito à ordem jurídica.
Verdade que há uma decisão judicial, declarando a ilegalidade da greve e determinando a imediata suspensão do movimento, mas o que consta da decisão é uma penalidade pecuniária. Ou seja, a determinação de suspensão da greve “sob pena de multa diária no caso de descumprimento”.
A jurisprudência trabalhista admite a dispensa por justa causa no caso de participação em greve declarada abusiva ou ilegal, mas esse efeito, conforme prevê essa mesma jurisprudência, depende da individualização da conduta, exigindo-se uma participação ativa e a prática de atos que possam, em si, quebrar, de forma indelével, o vínculo de boa-fé, extrapolando, pois, a própria greve, uma vez que a ordem jurídica internacional é bastante rígida quanto à rejeição de qualquer prática do empregador que possa se aproximar de uma discriminação sindical. Essa noção está muito clara no entendimento do TST, no sentido de que: “A simples adesão ao movimento paredista não constitui falta grave, porquanto somente atos de violência desencadeados por força desta paralisação conduzem ao reconhecimento da justa causa” (RR 546287/ 99, Relator desig. Ronaldo José Lopes Leal) e de forma ainda menos restritiva no STF: “A simples adesão à greve não constitui falta grave” (Súmula 316).
Pela simples ausência ao trabalho, no caso da greve declarada ilegal e, assim mesmo, somente depois de transitada em julgado a decisão, o empregador, portanto, poderia, no máximo, efetuar o desconto dos salários, sendo que uma justa causa somente adviria pelo abandono do emprego, que exige um completo desinteresse pela continuidade no trabalho (art. 482, da CLT), do que não se trata, evidentemente.
O empregador não pode, simplesmente, recusar a dinâmica dialética e coletiva que se produz na base da categoria dos trabalhadores, efetuando a dispensa de trabalhadores, com ou sem justa causa, em ato de represália ou com o propósito de desmantelar e amedrontar a classe trabalhadora. Oportuno lembrar que a Convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, dispõe que “os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego”, além da condenação do Brasil junto ao Comitê de Liberdade Sindical, ocorrida em 2009, em função das dispensas arbitrárias feitas pelos governos do Rio de Janeiro e de São Paulo por ocasião de greves dos trabalhadores metroviários (Caso nº 2.646).
A prática em questão não é apenas ilegal, do ponto de vista das normas de proteção do direito de organização sindical dos trabalhadores e do exercício do direito de greve, mas também uma ofensa à condição humana dos trabalhadores.
Neste sentido, impõe-se a imediata reintegração desses trabalhadores, ilegalmente dispensados, sem prejuízo da possibilidade de buscarem, judicialmente, uma indenização pelo dano moral experimentado. O que não apagará, de todo modo, mais um caso de violência institucionalizada contra a classe trabalhadora, que cumpre, portanto, deixar consignada.
Reconhecida a ilegalidade do ato cometido pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro, que atingiu, também, a mesma esfera dos crimes contra a organização do trabalho, as perguntas que se devem fazer os trabalhadores são: por que, afinal, a polícia não vai lá prender o prefeito, se ele cometeu o mesmo crime que acusam ter cometido os três garis? Que folia é essa? Indagações que, aliás, fazem lembrar a perplexidade exposta na música, Pelo Telefone, de 1917, atribuída à Donga:
O chefe da polícia
Pelo telefone
Manda me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar
A ideia de um país do Carnaval surge, na década de 30, com o propósito varguista de construir uma identidade nacional, buscando enaltecer o que o brasileiro tinha de próprio e positivo, deixando de revelar, no entanto, o objetivo em torno da formatação de uma sociedade capitalista, que pressupunha a constituição de uma nova classe operária com esse brasileiro, um sujeito naturalmente ordeiro e pacífico, e que, com a evolução dos tempos, embora ainda festivo e alegre, se apresentava como disciplinado e trabalhador, uma espécie de malandro regenerado, que portava virtudes religiosas e propensão ao casamento, pronto, portanto, para se integrar ao projeto de enriquecimento da Nação, contrariamente aos operários estrangeiros, que portavam ideias perniciosas à ordem brasileira.
O Carnaval, como veículo de aproximação com o povo, seria apropriado para que se fizesse um elogio de valores que interessavam ao governo.
Mas, como observa Eliana de Freitas Dutra, “Ainda assim, o carnaval popular seguiu sua trilha de riso, deboche e alegria na animada capital da República. Tributário de outras festas populares, como a Festa da Penha, o Carnaval conservou a herança dos ritmos trazidos da África pelos escravos, levados para essa festa popular religiosa. Os sambas de roda vindos da Bahia, tendo sobrevivido nos terreiros de samba, também migraram para o Carnaval, que ocupava locais como a Praça Onze, onde se divertiam as gentes dos subúrbios e desfilavam os blocos de sujos, os mascarados e os zé-pereiras, com seus tambores e bombos.” [1]
Mesmo com toda propaganda, a música de boa parte de sambistas continuou se desenvolvendo, isso porque estava envolto em um dado cultural mais profundo, tendo sido integrado ao cenário das cidades, ecoando, também, o grito de liberdade dos ex-escravos. “A musicalidade circunscrita ao latifúndio – em si, expressão acabada de um documento de barbárie –, ao se libertar com a Abolição, invade a cidade: um grito ecoa pela Nação, animando a festa (carnaval), embriagando a atmosfera urbana com uma música popular envolvente, de grande ressonância nas diversas nervuras da sociedade.”[2]
No samba, os protagonistas, vítimas da divisão escravista do trabalho, repudiam o trabalho explorado, promovendo uma inversão, onde “o operário é a principal personagem à sombra, ofuscado pela ruidosa e alegre consagração da figura do malandro.”[3]
O Carnaval, assim, é uma festa que impõe a desordem num ambiente em que a ordem segrega. É a busca de outra ordem, outra harmonia, o que foi difundido, magistralmente, por Noel Rosa, seguindo a trilha traçada por João da Baiana, Donga, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha, sendo acompanhado no nordeste por Jackson do Pandeiro, em São Paulo, por Adoniram Barbosa e, no Rio, por Moreira da Silva, introdutor do breque, “um dos recursos mais maliciosos da canção brasileira, portador de distanciamento irônico” [4] e que proclamou: “Estou cansado dessa vida de otário/Afinal o meu salário já não chega para mim”.
Noel Rosa, que assumiu a postura de vida boêmia, percebeu bem a supressão do humano pelo trabalho fabril, que se procurava então estimular, como revelado em Três Apitos, de 1933:
Quando o apito da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Ou está interessada
Em fingir que não me vê
Você que atende ao apito de uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina do meu carro
Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé no agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você
Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente
Impertinente
Que dá ordens a você
Sou do sereno poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe porque
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto ao piano
Estes versos pra você
O problema é que na relação simbiótica entre sambistas e governo este aprendeu a se valer do “jogo de cintura” para dissimular, propositalmente, a realidade, apropriando-se da cultura da malandragem. Ou seja, promovendo aquilo que se poderia chamar de uma “malandragem oficial” e ao longo dos anos, submetendo o malandro do povo ao estágio extremo da necessidade e da marginalidade, impondo-lhe não apenas a miséria, mas também, repressão institucionalizada, que se intensificou no período da ditadura civil-militar de 1964 em diante, e acabou por manter-se como a única malandragem possível no cenário nacional, como denunciado por Chico Buarque, em 1977-1978, na música, Homenagem ao malandro, feita para a sua peça, Ópera do Malandro:
Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
- não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
Em suma, o Carnaval se institucionalizou e mais tarde passou a ser objeto importante da lógica da produção capitalista e a classe operária brasileira, voltada a um trabalho cujo proveito não lhe permite concreta ascensão social, foi forjada e expulsa do domínio ideológico das festas populares.
Tudo isso se fez, no entanto, dentro da característica da cultura do disfarce, que restou, concretamente, como o caldo cultural do período. A institucionalização estatal da malandragem, além disso, foi incorporada pela classe dominante, fazendo com que as relações sociais se desenvolvessem na perspectiva da dissimulação. É comum, pois, no percurso histórico, verificar a classe dominante proferindo discursos sobre questões sociais, partindo de seu modo de ver o mundo, mas fazendo-o de tal forma que pareça estar, meramente, reproduzindo os interesses da classe dominada. E, não raro, utilizando-se dos meios de comunicação em massa, faz com que essa sua racionalidade seja posta nas falas dos trabalhadores e excluídos em geral.
É assim, por exemplo, que se tenta fazer crer que os direitos sociais são prejudiciais aos seus titulares, por serem artificiais, já que a natureza das coisas é determinada pelas possibilidades econômicas, que não podem ser alteradas já que o “status quo” precisa ser preservado, e que, de fato, deixar de aplicar os direitos é um benefício que se faz em prol do bem-estar dos trabalhadores. Utilizam, pois, da estratégia básica da malandragem, que é se apropriar da dialética entre ordem e desordem, pervertendo a regra do jogo e alterando até mesmo a perspectiva do outro.
O capitalismo amadureceu no Brasil por esses fatores, tendo sido criado um exército de mão-de-obra para satisfazer as necessidades da reprodução do capital, atendendo, inclusive, interesses econômicos internacionais, mas sem permitir a percepção dessa mudança, mantendo-se a visão do Brasil como o país da natureza abundante, onde tudo que se planta dá, que não está integrado por classes, que conta com um povo coeso e harmônico, de convivência pacífica, numa lógica corporativa, mesmo que não exista e se leve adiante um projeto de sociedade, imperando, em concreto, a ideologia do individualismo e do liberalismo.
Um país que se apresenta formado por pessoas pacíficas, ordeiras, tementes a Deus, felizes e irreverentes, mas que, em concreto, se desenvolve por intermédio de separação de classes com profunda desigualdade, que reverbera valores como o racismo e o machismo, e que se mantém por meio da violência institucionalizada, tratando como desajustados, marginais, os que tentam relevar e superar as injustiças sociais e as dissimulações em que a “ordem” se funda.
Um país no qual a ordem jurídica, que garante valores como a dignidade e a justiça social, chegando ao ponto de vincular o direito de propriedade ao cumprimento de sua função social, é apresentada como obra-prima da racionalidade, mas, que, nem de longe, enfrenta o desafio de atingir, em concreto, a realidade. As leis trabalhistas, por exemplo, foram criadas, mas nunca com o propósito real de serem aplicadas...
A violência da preservação das desigualdades se produz, repetidas vezes, por formas veladas, tentando fazer crer que toda busca de alterar a realidade social representa a instalação do caos, uma forma de quebrar a harmonia entre as classes, fazendo-se supor a felicidade de quem está sendo explorado e para quem, inclusive, faz bem continuar sendo explorado, mesmo com supressão de direitos.
O ataque recorrente que se faz à legislação trabalhista se insere neste contexto.
Ora, os ataques partem exatamente daqueles que mais se beneficiam da legislação em questão, eis que serve para manter sob controle a classe operária, evidenciando, pois, uma atitude dissimulada, esperta, para se opor, de antemão, a possíveis reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de trabalho, constituindo ao mesmo tempo, de forma até contraditória, a falência entre nós de uma racionalidade liberal, deixando transparecer, mesmo sem querer, o resquício escravista e a lógica oligárquica. É como se dissessem: “Direito ao vagabundo, prá quê?”
2. O fato e o direito
E eis que, em março de 2014, trabalhadores brasileiros, na condição mesma de trabalhadores, garis, resolvem se apresentar na festa do Carnaval e o fazem da maneira que pode, fazendo greve.
E o que se viu em reação? Bom o que se viu foi o reflexo de toda essa história da institucionalização esperta da exclusão.
Anunciada a intenção dos garis em fazer greve, para auferir melhores condições de trabalho, o sindicato e o empregador se anteciparam e fizeram um acordo, em 03 de março. Esse acordo, segundo afirmam os garis, foi bem aquém das pretensões da categoria. Os garis resolveram, então, deliberar pela greve e tiveram que fazê-lo sem a presença do sindicato, o qual já havia se posicionado sobre o tema.
A partir daí o que se viu foi a utilização de todo o aparato estatal para destruir os trabalhadores, até o ponto de alguns deles terem sido chamados de “marginais e delinqüentes” pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro.
Ora, enquanto os garis se submetem a trabalhar, realizando uma atividade extremamente dura, durante várias horas por dia, ganhando R$803,00 por mês, chacoalhando nos trens da Central, são considerados cidadãos ordeiros, pacíficos, virtuosos. Alguns desses, inclusive, como se anunciou, trabalham como gari há 30 (trinta) anos. Mas, se resolvem se valer da ocasião do advento do Carnaval para pressionar o empregador, visando mudar um pouco a sua “sorte” na vida, são espertalhões, “chantagistas”, como afirmou o presidente da COMLURB.
Os garis, então, ao se revelarem como trabalhadores, com consciência de classe, deixando de ser figuras alegóricas, espécies de balões de ensaio para estudos antropológicos, tiveram a oportunidade de perceber a forma concreta como o Estado, na qualidade de empregador, se relaciona com trabalhadores.
O Estado se recusou a conversar e impôs aos garis, por efeito de uma estratégia jurídica, a volta ao trabalho. Com a recusa, tratou, imediatamente, de “dispensar”, “mandar embora”, os garis, fazendo-o por meio de mensagem pelo celular. A tecnologia a serviço da perversidade. E foi além. Foram utilizados dispositivos, em desuso, do Código Penal, pertinentes aos crimes contra a organização de trabalho, instituídos, não por acaso, durante o Estado Novo, para prender dirigentes sindicais que estavam tentando se opor que colegas furassem a greve.
Com relação à ação dos garis trabalhadores o Estado agiu rapidamente, mostrou eficiência, utilizando-se dos instrumentos e instituições jurídicas à sua disposição para a retomada da ordem, chegando a conduzir trabalhadores à prisão, sob a pecha de “marginais”. Mas, esse mesmo Estado não foi eficiente para, primeiro, negociar de boa-fé com os garis e não consta que tenha demonstrado a mesma eficiência quando os direitos dos trabalhadores, em geral, deixam de ser respeitados por alguns empregadores, que insistem em se valer da ilicitude para frustrar a concorrência e majorarem, indevidamente, os seus lucros.
No mesmo caderno do Jornal que traz a notícia da greve dos garis, pondo em destaque um grande foto do lixo nas ruas e a prisão dos “marginais”, há uma nota, pequena, que informa: “90 mil crianças estão à espera de vaga em creche em SP”. Claro que se trata de outro Estado da Federação. O que se está dizendo, e os exemplos seriam inúmeros para ilustração, é que a eficiência do Estado para reprimir o cidadão que luta por direitos, visando à melhoria de sua condição social, é inversamente proporcional quando o assunto é a concretização dos direitos sociais assegurados, constitucionalmente, a esses mesmos cidadãos.
E, juridicamente falando, está tudo errado.
Primeiro, o acordo, para ter validade jurídica precisava ter sido submetido à assembleia dos trabalhadores, já que o preceito democrático é o que rege, fundamentalmente, nosso Estado de Direito. Essa, ademais, é a previsão expressa do artigo 612, da CLT: “Os sindicatos só poderão celebrar Convenções ou Acordos Coletivos de Trabalho, por deliberação de Assembleia Geral especialmente convocada para esse fim, consoante o disposto nos respectivos Estatutos, dependendo a validade da mesma do comparecimento e votação, em primeira convocação, de 2/3 dos associados da entidade, se se tratar de Convenção, e dos interessados, no caso de Acordo, e, em segunda, de 1/3 dos mesmos.”
No caso da greve, ainda que dependa do sindicato para ser deflagrada, não se pode negá-la como fato social, respaldado pelo direito, quando haja distensão notória entre os trabalhadores e a direção do sindicato, até porque é dever das entidades de representação, dado o preceito democrático, convocar assembleias para deliberações, sendo que a greve, nos termos da lei, concretamente, não está condicionada ao direcionamento da diretoria e sim à vontade da categoria expressa em assembleia geral, “que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços”, sendo certo também que, por ilação lógica, somente a assembleia pode decidir pelo fim da greve (art. 4º., da Lei n. 7.783/89).
O acordo feito pela direção do sindicato não vincula, portanto, a categoria. E, vale reforçar: ainda que a greve se exerça por meio do sindicato, o direito de greve não pertence ao sindicato, como revela, expressamente, o artigo 9º., da CF, reproduzido, ipsis literis, no art. 1º., da Lei n. 7.783/89: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.” (grifou-se)
Ao que consta, assembleia dos trabalhadores, mesmo não tendo sido chamada pelo sindicato, rejeitou o acordo e deliberou pela greve, não havendo, portanto, ilegalidade alguma no ato dos trabalhadores de deixarem de comparecer ao trabalho depois disso, pois essa é, de fato, a essência da greve, qual seja, a paralisação do trabalho.
Desse modo, a atitude do prefeito do município do Rio de Janeiro ao determinar a “dispensa” de trabalhadores, fazendo-o ainda da forma vexatória como o fez, ou seja, por envio de mensagem pelo celular, configura uma flagrante ilegalidade, além de ser uma agressão à condição humana e jurídica dos trabalhadores, atitude que, adotando a própria lógica argumentativa trazida à tona pelo prefeito, pode ser enquadrada como ato de “marginal ou delinquente”, vez que em desrespeito à ordem jurídica.
Verdade que há uma decisão judicial, declarando a ilegalidade da greve e determinando a imediata suspensão do movimento, mas o que consta da decisão é uma penalidade pecuniária. Ou seja, a determinação de suspensão da greve “sob pena de multa diária no caso de descumprimento”.
A jurisprudência trabalhista admite a dispensa por justa causa no caso de participação em greve declarada abusiva ou ilegal, mas esse efeito, conforme prevê essa mesma jurisprudência, depende da individualização da conduta, exigindo-se uma participação ativa e a prática de atos que possam, em si, quebrar, de forma indelével, o vínculo de boa-fé, extrapolando, pois, a própria greve, uma vez que a ordem jurídica internacional é bastante rígida quanto à rejeição de qualquer prática do empregador que possa se aproximar de uma discriminação sindical. Essa noção está muito clara no entendimento do TST, no sentido de que: “A simples adesão ao movimento paredista não constitui falta grave, porquanto somente atos de violência desencadeados por força desta paralisação conduzem ao reconhecimento da justa causa” (RR 546287/ 99, Relator desig. Ronaldo José Lopes Leal) e de forma ainda menos restritiva no STF: “A simples adesão à greve não constitui falta grave” (Súmula 316).
Pela simples ausência ao trabalho, no caso da greve declarada ilegal e, assim mesmo, somente depois de transitada em julgado a decisão, o empregador, portanto, poderia, no máximo, efetuar o desconto dos salários, sendo que uma justa causa somente adviria pelo abandono do emprego, que exige um completo desinteresse pela continuidade no trabalho (art. 482, da CLT), do que não se trata, evidentemente.
O empregador não pode, simplesmente, recusar a dinâmica dialética e coletiva que se produz na base da categoria dos trabalhadores, efetuando a dispensa de trabalhadores, com ou sem justa causa, em ato de represália ou com o propósito de desmantelar e amedrontar a classe trabalhadora. Oportuno lembrar que a Convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, dispõe que “os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego”, além da condenação do Brasil junto ao Comitê de Liberdade Sindical, ocorrida em 2009, em função das dispensas arbitrárias feitas pelos governos do Rio de Janeiro e de São Paulo por ocasião de greves dos trabalhadores metroviários (Caso nº 2.646).
A prática em questão não é apenas ilegal, do ponto de vista das normas de proteção do direito de organização sindical dos trabalhadores e do exercício do direito de greve, mas também uma ofensa à condição humana dos trabalhadores.
Neste sentido, impõe-se a imediata reintegração desses trabalhadores, ilegalmente dispensados, sem prejuízo da possibilidade de buscarem, judicialmente, uma indenização pelo dano moral experimentado. O que não apagará, de todo modo, mais um caso de violência institucionalizada contra a classe trabalhadora, que cumpre, portanto, deixar consignada.
Reconhecida a ilegalidade do ato cometido pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro, que atingiu, também, a mesma esfera dos crimes contra a organização do trabalho, as perguntas que se devem fazer os trabalhadores são: por que, afinal, a polícia não vai lá prender o prefeito, se ele cometeu o mesmo crime que acusam ter cometido os três garis? Que folia é essa? Indagações que, aliás, fazem lembrar a perplexidade exposta na música, Pelo Telefone, de 1917, atribuída à Donga:
O chefe da polícia
Pelo telefone
Manda me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar
No caso específico dos garis, a reflexão, que passa pelo aspecto do reconhecimento de que a greve tem algo de Carnaval, por representar a “desordem” numa ordem que oprime (e talvez por isso o riso de Renato Luiz Lourenço, o “Sorriso”, não tenha sido tão verdadeiro quanto agora), prossiga com uma bela conversa com Drummond [5]:
Amigo lixeiro, mais paciência.
Você não pode fazer greve.
Não lhe falaram isto, pela voz
do seu prudente sindicato?
Não sabe que sua pá de lixo
é essencial a segurança nacional?
A lei o diz (decreto-lei que
nem sei se pode assim chamar-se,
em todo caso papel forte,
papel assustador). Tome cuidado,
lixeiro camarada, e pegue a pá,
me remova depressa este monturo
que ofende a minha vista e o meu olfato.
Você já pensou que descalabro,
que injustiça ao nosso status ipanêmico, lebloniano,
sanconrádico,
barramárico,
se as calçadas da Vieira Souto e outras conspícuas
vias de alto coturno continuarem
repletas de pacotes, latões e sacos plásticos
(estes, embora azuis), anunciando
uma outra e feia festa: a da decomposição
mor das coisas do nosso tempo,
orgulhoso de técnica e de cleaning?
Ah, que feio, meu querido,
essa irmanar de ruas, avenidas,
becos, bulevares, vielas e betesgas e tatatá
do nosso Rio tão turístico
e tão compartimentado socialmente,
na mesma chave de perfume intenso
que Lanvin jamais assinaria!
Veja você, meu caro irrefletido:
a Rua Cata-Piolho, em Deus-me-livre,
equiparada à Atlântica Avenida
(ou esta àquela)
por idêntico cheiro e as mesmas moscas
sartrianamente varejando,
os restos tão diversos uns dos outros,
como se até nos restos não houvesse
a diferença que vai do lixo ao luxo!
Há lixo e lixo, meu lixeiro.
O lixo comercial é bem distinto
do lixo residencial, e este, complexo,
oferece os mais vários atrativos
a quem sequer tem lixo a jogar fora.
Ouço falar que tudo se resume
em você ganhar um pouco mais
de mínimos salários.
Ora essa, rapaz: já não lhe basta
ser o confiscável serviçal
a que o Rio confere a alta missão
de sumir com seus podres, contribuindo
para que nossa imagem se redobre
de graças mil sob este céu de anil?
Vamos, aperte mais o cinto,
se o tiver (barbante mesmo serve)
e pense na cidade, nos seus mitos
que cumpre manter asseados e luzidos.
Não me faça mais greve, irmão-lixeiro.
Eu sei que há pouco pão e muita pá,
e nem sempre ou jamais se encontram dólares,
jóias, letras de câmbio e outros milagres
no aterro sanitário.
E daí? Você tem a ginga, o molejo necessários
para tirar de letra um samba caprichado
naqueles comerciais de televisão,
e ganhar com isto o seu cachê
fazendo frente ao torniquete
da inflação.
Pelo que, prezadíssimo lixeiro,
estamos conversados e entendidos:
você já sabe que é essencial
à segurança nacional
e, por que não, à segurança multinacional.
Amigo lixeiro, mais paciência.
Você não pode fazer greve.
Não lhe falaram isto, pela voz
do seu prudente sindicato?
Não sabe que sua pá de lixo
é essencial a segurança nacional?
A lei o diz (decreto-lei que
nem sei se pode assim chamar-se,
em todo caso papel forte,
papel assustador). Tome cuidado,
lixeiro camarada, e pegue a pá,
me remova depressa este monturo
que ofende a minha vista e o meu olfato.
Você já pensou que descalabro,
que injustiça ao nosso status ipanêmico, lebloniano,
sanconrádico,
barramárico,
se as calçadas da Vieira Souto e outras conspícuas
vias de alto coturno continuarem
repletas de pacotes, latões e sacos plásticos
(estes, embora azuis), anunciando
uma outra e feia festa: a da decomposição
mor das coisas do nosso tempo,
orgulhoso de técnica e de cleaning?
Ah, que feio, meu querido,
essa irmanar de ruas, avenidas,
becos, bulevares, vielas e betesgas e tatatá
do nosso Rio tão turístico
e tão compartimentado socialmente,
na mesma chave de perfume intenso
que Lanvin jamais assinaria!
Veja você, meu caro irrefletido:
a Rua Cata-Piolho, em Deus-me-livre,
equiparada à Atlântica Avenida
(ou esta àquela)
por idêntico cheiro e as mesmas moscas
sartrianamente varejando,
os restos tão diversos uns dos outros,
como se até nos restos não houvesse
a diferença que vai do lixo ao luxo!
Há lixo e lixo, meu lixeiro.
O lixo comercial é bem distinto
do lixo residencial, e este, complexo,
oferece os mais vários atrativos
a quem sequer tem lixo a jogar fora.
Ouço falar que tudo se resume
em você ganhar um pouco mais
de mínimos salários.
Ora essa, rapaz: já não lhe basta
ser o confiscável serviçal
a que o Rio confere a alta missão
de sumir com seus podres, contribuindo
para que nossa imagem se redobre
de graças mil sob este céu de anil?
Vamos, aperte mais o cinto,
se o tiver (barbante mesmo serve)
e pense na cidade, nos seus mitos
que cumpre manter asseados e luzidos.
Não me faça mais greve, irmão-lixeiro.
Eu sei que há pouco pão e muita pá,
e nem sempre ou jamais se encontram dólares,
jóias, letras de câmbio e outros milagres
no aterro sanitário.
E daí? Você tem a ginga, o molejo necessários
para tirar de letra um samba caprichado
naqueles comerciais de televisão,
e ganhar com isto o seu cachê
fazendo frente ao torniquete
da inflação.
Pelo que, prezadíssimo lixeiro,
estamos conversados e entendidos:
você já sabe que é essencial
à segurança nacional
e, por que não, à segurança multinacional.
[1] DUTRA, Eliana de Freitas. Cultura. In: História do Brasil Nação: 1808-2010. Direção Lilia Moritz Schwarcz. Vol. 4. Olhando para dentro: 1930-1964. Coordenação Ângela de Castro Gomes. São Paulo: Fundación Mapfre/Objetiva, 2013, p. 264.
[2] História geral da civilização brasileira. Tomo III, Vol. 11: O Brasil republicano. Direção de Boris Fausto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 614.
[3] História geral da civilização brasileira. Tomo III, Vol. 11: O Brasil republicano. Direção de Boris Fausto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 614.
[4] História geral da civilização brasileira. Tomo III, Vol. 11: O Brasil republicano. Direção de Boris Fausto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 621. [5] “Conversa com o lixeiro”, In: Amar se aprende amando, obra publicada em 17/11/79.
[5] “Conversa com o lixeiro”, In: Amar se aprende amando, obra publicada em 17/11/79.