quarta-feira, fevereiro 08, 2006

quarta ah portuguesa: o que nos aproxima e o que nos distancia

O cerco

Já faltou mais para que um dia destes tenha de passar à clandestinidade ou, no mínimo, tenha de me enfiar em casa a viver os meus vícios secretos. Tenho um catálogo deles e todos me parecem ameaçados: sou heterossexual «full time»; fumo, incluindo charutos; bebo; como coisas como pezinhos de coentrada, joaquinzinhos fritos e tordos em vinha d’alhos; vibro com o futebol; jogo cartas, quando arranjo três parceiros para o «bridge» ou quando, de dois em dois anos, passo à porta de um casino e me apetece jogar «black-jack»; não troco por quase nada uma caçada às perdizes entre amigos; acho a tourada um espectáculo deslumbrante, embora não perceba nada do assunto; gosto de ir à pesca «ao corrido» e daquela luta de morte com o peixe, em que ele não quer vir para bordo e eu não quero que ele se solte do anzol; acredito que as pessoas valem pelo seu mérito próprio e que quem tem valor acaba fatalmente por se impor, e por isso sou contra as quotas; deixei de acreditar que o Estado deva gastar os recursos dos contribuintes a tentar «reintegrar» as «minorias» instaladas na assistência pública, como os ciganos, os drogados, os artistas de várias especialidades ou os desempregados profissionais; sou agnóstico (ou ateu, conforme preferirem) e cada vez mais militantemente, à medida que vou constatando a actualidade crescente da velha sentença de Marx de que «a religião é o ópio dos povos»; formado em direito, tornei-me descrente da lei e da justiça, das suas minudências e espertezas e da sua falta de objectividade social, e hoje acredito apenas em três fontes legítimas de lei: a natureza, a liberdade e o bom senso.

Trogloditas como eu vivem cada vez mais a coberto da sua trincheira, numa batalha de retaguarda contra um exército heterogéneo de moralistas diversos: os profetas do politicamente correcto, os fanáticos religiosos de todos os credos e confissões, os fascistas da saúde, os vigilantes dos bons costumes ou os arautos das ditaduras «alternativas» ou «fracturantes». Se eu digo que nada tenho contra os casamentos homossexuais, mas que, quanto à adopção, sou contra porque ninguém tem o direito de presumir a vontade «alternativa» de uma criança, chamam-me homofóbico (e o Parlamento Europeu acaba de votar uma resolução contra esse flagelo, que, como está à vista, varre a Europa inteira); se a uma senhora que anteontem se indignava no «Público» porque detectou um sorriso condescendente do dr. Souto Moura perante a intervenção de uma deputada, na inquirição sobre escutas na Assembleia da República, eu disser que também escutei a intervenção da deputada com um sorriso condescendente, não por ela ser mulher mas por ser notoriamente incompetente para a função, ela responder-me-ia de certeza que eu sou «machista» e jamais aceitaria que lhe invertesse a tese: que o problema não é aquela deputada ser mulher, o problema é aquela mulher ser deputada; se eu tentar explicar por que razão a caça civilizada é um acto natural, chamam-me assassino dos pobres animaizinhos, sem sequer quererem perceber que os animaizinhos só existem porque há quem os crie, quem os cace e quem os coma; se eu chego a Lisboa, como me aconteceu há dias, e, a vinte quilómetros de distância num céu límpido, vejo uma impressionante nuvem de poluição sobre a cidade, vão-me dizer que o que incomoda verdadeiramente é o fumo do meu cigarro, e até já em Espanha e Itália, os meus países mais queridos, tenho de fumar envergonhadamente à porta dos bares e restaurantes, como um cão tinhoso; enfim, se eu escrever velho em vez de «idoso», drogado em vez de «tóxicodependente», cego em vez de «invisual», preso em vez de «recluso» ou impotente em vez de «portador de disfunção eréctil», vou ser adoptado nas escolas do país como exemplo do vocabulário que não se deve usar. Vou confessar tudo, vou abrir o peito às balas: estou a ficar farto desta gente, deste cerco de vigilantes da opinião e da moral, deste exército de eunucos intelectuais.

Agora vêm-nos com esta história dos «cartoons» sobre Maomé saídos num jornal dinamarquês. Ao princípio a coisa não teve qualquer importância: um «fait-divers» na vida da liberdade de imprensa num país democrático. Mas assim que o incidente foi crescendo e que os grandes exportadores de petróleo, com a Arábia Saudita à cabeça, começaram a exigir desculpas de Estado e a ameaçar com represálias ao comércio e às relações económicas e diplomáticas, as opiniões públicas assustaram-se, os governantes europeus meteram a viola da liberdade de imprensa ao saco e a srª comissária europeia para os Direitos Humanos (!) anunciou um inquérito para apurar eventuais sintomas de «racismo» ou de «intolerância religiosa» nos «cartoons» profanos. Eis aonde se chega na estrada do politicamente correcto: a intolerância religiosa não é de quem quer proibir os «cartoons», mas de quem os publica!

A Dinamarca não tem petróleo, mas é um dos países mais civilizados do mundo: tem um verdadeiro Estado Social, uma sociedade aberta que pratica a igualdade de direitos a todos os níveis, respeita todas as crenças, protege todas as minorias, defende o cidadão contra os abusos do Estado e a liberdade contra os poderosos, socorre os doentes e os velhos, ajuda os desfavorecidos, acolhe os exilados, repudia as mordomias do poder, cobra impostos a todos os ricos, sem excepção, e distribui pelos pobres. A Arábia Saudita tem petróleo e pouco mais: é um país onde as mulheres estão excluídas dos direitos, onde a lei e o Estado se confundem com a religião, onde uma oligarquia corrupta e ostentatória divide entre si o grosso das receitas do petróleo, onde uma polícia de costumes varre as ruas em busca de sinais de «imoralidade» privada, onde os condenados são enforcados em praça pública, os ladrões decepados e as «adúlteras» apedrejadas em nome de um código moral escrito há quase seiscentos anos. E a Dinamarca tem de pedir desculpas à Arábia Saudita por ser como é e por acreditar nos valores em que acredita?

Eu não teria escrito nem publicado «cartoons» a troçar com Maomé ou com a Nossa Senhora de Fátima. Porque respeito as crenças e a sensibilidade religiosa dos outros, por mais absurdas que elas me possam parecer. Mas no meu código de valores - que é o da liberdade - não proíbo que outros o façam, porque a falta de gosto ou de sensibilidade também têm a liberdade de existir. E depois as pessoas escolhem o que adoptar. É essa a grande diferença: seguramente que vai haver quem pegue neste meu texto e o deite ao lixo, indignado. É o seu direito. Mas censurá-lo previamente, como alguns seguramente gostariam, isso não.

É por isso que eu, que todavia sou um apaixonado pelo mundo árabe e islâmico, quanto toca ao essencial, sou europeu - graças a Deus. Pelo menos, enquanto nos deixarem ser e tivermos orgulho e vontade em continuar a ser a sociedade da liberdade e da tolerância.
(Miguel Sousa Tavares no "Expresso" de 4 de Fevereiro de 2006)


Não aos necrófilos


Senhor de idade com certa experiência jornalística, ouso afirmar que temo uma catástrofe de proporções mundiais graças aos líderes políticos da nossa banda, ou seja, a colonizada pelos Estados Unidos e sua medíocre cultura que se supõe eterna. No romance Catch 22 (lançado no Brasil como Ardil 22 ), de Joseph Heller, o velho dono de um bordel romano onde mocinhas de 18 anos baixam calcinhas de algodão por uma de nylon, presente dos vitoriosos soldados americanos, diz o seguinte:

- Você são ricos, mas vão ser derrotados e morrer.

O oficialzinho americano que quer converter uma das jovens ao american way of life , acha que o velho está maluco. Responde:

- Nós somos o exército mais poderoso do mundo, nunca perdemos uma guerra e acabamos de derrotar os fascistas e os nazistas.

- Por isso mesmo. Nós já fomos um império. Temos três mil anos e aprendemos a perder guerras. Nós aprendemos a nos curvar com o vento e por isso não quebramos. Na primeira derrota vocês quebrarão e serão mortos.

Belo choque cultural!

O americano não entendeu nada. Hoje as coisas mudaram. Para pior. Depois da Guerra Fria, das ditaduras oficiais na América Latina, da vitória do Vietnã, da queda do muro, da Perestroika e das suas conseqüências macdonalescas , jovens líderes ocidentais (doutrinados por velhos patifes) que não pegaram nem a guerra da Coréia, aderiram de corpo e alma (?) à única religião que realmente acreditam: o mercado nas mãos das poucas transnacionais. Temendo a previsão do velho cafifa, Bush e seus satélites jogaram-se sobre o mundo com o apetite e a arrogância de adolescentes. Os políticos transformaram-se em executivos e o mapa em corporações financeiras. Tudo que dá lucro não é crime. Como o oficialzinho em Roma, julgam que a história se cristaliza em anos ou décadas quando em verdade ela se move lentamente. A Macedônia, que já foi dona do universo conhecido, hoje é um país nanico menor que a cidade do Rio. A Boêmia, que foi sede do Sacro Império Romano, hoje é um bairro da República Tcheca. As culturas são difíceis de serem destruídas como provam alguns índios amazonenses que insistem em não morrer e nem todo o mundo quer se chamar Jane ou Joe; nem todos querem champignons for breackfast , nem todos estão dispostos a aceitar que acabem com sua cultura como o Brasil. Convenhamos, só um país liderado por adolescentes executivos malucos destruiria o berço da humanidade como os gringos estão fazendo no Iraque e acham que vão fazer no Irã, ou seja com aqueles persas que tanto trabalho deram aos gregos.

Há religiões - e quem vos fala é um homem que já se desligou de qualquer laço religioso há muito tempo - que podem parecer ridículas aos olhos ocidentais. Isso não nos dá direito de impor-lhes a nossa. Para os não-cristãos pode ser ridículo que comamos a carne e bebamos o sangue de nosso Deus. Os hinduístas têm um deus macaco e uma seita protestante americana leva cobras para a culto a fim de adorá-las. De uma coisa, porém, eu tenho certeza: a religião ocidental que se chama neoliberalismo quer acabar com todas as culturas com exceção da do mercado. O neoliberalismo precisa emburrecer o mundo através de uma cultura televisiva ( Big brothers e casos homossexuais entre caubóis) porque, burro, o sujeito que não tem cultura compra o que lhe for ordenado. O espírito independente e revolucionário compra aquilo de que precisa.

A imprensa ocidental comportou-se diante da vitória do partido Hamas na Palestina como se o diabo houvesse triunfado. O Globo deu em manchete ''Hamas toma o poder'' e não ''Hamas vence as eleições'' como seria correto. Poderiam acrescentar: ''Vence democraticamente, sem fraudes, segundo Jimmy Carter''. Em vez de aceitar, como o fariam adultos preocupados com o destino do mundo, o fato de o povo palestino preferir, por ora, o partido mais radical e tentar descobrir o porquê, os americanos e seus aliados agem como se os hunos houvessem dominado o planeta.

Está na hora desse pessoal começar a agir de modo conseqüente. Não há nada no mundo que eu odeie mais do que a censura e a hipocrisia, irmãs siamesas. Logo, não posso ser favorável à grita do mundo árabe em relação a uma caricatura de Maomé publicada por um jornal inofensivo como o Jullens Post , da Jutlândia. Devo, porém, levar em consideração que os árabes são mais religiosos que os cristãos e eles veneram Maomé como os cristãos veneram Jesus. O que fariam os americanos se a imprensa árabe publicasse uma caricatura do marine Jesus, baioneta nas mãos, matando crianças palestinas? Jamais como hoje o mundo esteve tão perto de seu fim. Em vez de insuflar o ódio, porque não refletir seriamente sobre quem realmente quer a guerra?

Fausto Wolf , 07,02,06, no Jornal do Brasil.

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