Sempre criticamos a Publicidade por esconder suas secretas pretensões sob camadas de retórica, mitologias, tons pastéis, cores suaves e a atmosfera de um eterno comercial de produtos matinais. Esqueça tudo isso! Em tempos atuais de crise econômica e milhões de desempregados para os quais a solução inevitável apontada são o empreendedorismo, “pejotização”, precarização profissional e trabalho intermitente, a Publicidade brasileira foi convocada para educar as massas através de comerciais francos, duros e agressivos. Ivete Sangalo flerta com “losers” em pontos de ônibus para promover ensino à distância; Luciano Huck e Rodrigo Faro em peças publicitárias de universidades explicitamente afirmam que a profissão de professor é um bico para “aumentar a sua renda”; campanhas do Uber defendem a “uberização” para você ter mais tempo de “fazer o que gosta”; e o banco Santander assertivamente diz que a carteira de trabalho já era e que no lugar ficou uma maquininha de pagamentos com cartões. Bem vindo ao “Brave New World” da publicidade atual.
Houve tempos em que a Publicidade figurava o mundo em tons pastéis como se todo comercial fosse um eterno vídeo de cereais e matinais: “Oh Happy days!”... “Be Happy!” ou qualquer música folk bacana para começar com otimismo o café da manhã.
Professores, intelectuais, pesquisadores ou militantes de esquerda mobilizavam todo um arsenal teórico (linguístico, semiótico, freudo-marxista etc.) para desconstruir e desmascarar as maquinações ideológicas e imperialistas por trás de toda dessa positividade da sociedade de consumo.
Mas, pelo menos na publicidade brasileira, isso está mudando. Nos tempos atuais de todas as reformas (trabalhistas, previdenciárias, políticas etc.) a toque de caixa e turbinada pelo governo do desinterino Temer em tempos bicudos de crise, inicia-se uma tendência inédita na criação publicitária de abandonar o característico mundo em tons pastéis para partir para os “finalmentes” – e sem mais qualquer firula retórica, semiótica ou sofística.
Uma nova tendência, por assim dizer, realista, crua, cortante, como se preparasse o consumidor para a dureza da vida ou para dias piores que estão por vir. Sai os tons pastéis e suaves para entrar cores quentes e com fortes contrastes.
Esqueça os antigos esforços intelectuais para desconstruir mensagens ocultas. A nova tendência é ir direto ao ponto: agora você é desempregado! Agora viverás de bicos! Agora terás que procurar algo que complemente sua renda! Sua carteira de trabalho já era! E seu trabalho doravante é uberizado, intermitente, descontínuo... se tiver!
Estamos nos referindo a cinco peças publicitárias, alinhadas ao atual zeitgeist (o “espírito do tempo”) de empurrar goela abaixo a receita neoliberal que pulveriza o trabalhismo para impor o cada um por si do darwinismo social.
Ivete Sangalo em pontos de ônibus e espelhos lançando olhares amorosos para losers que precisam subir na vida através de cursos de EAD da Laureate Universities; Luciano Huck sugerindo a alunos universitários uma segunda graduação na Faculdade Anhanguera para ser professor e “aumentar a sua renda”; o apresentador Rodrigo Faro dando a mesma sugestão, dessa vez pela UNIPAR; a campanha do aplicativo UBER que afirma que dirigir é a melhor forma para ter tempo para fazer tudo aquilo que você gosta; e por último, mas não menos importante, o comercial da “vermelhinha” do banco Santander, maquininha de cartões apresentada como “a sua nova carteira de trabalho”.
1. Ivete Sangalo flerta com perdedores que querem vencer
Dois vídeos publicitários da EAD Laureate. No primeiro, um assustado e apalermado jovem em um ponto de ônibus vê em um cartaz comercial da Laureate a imagem de Ivete Sangalo ganhar vida e exortá-lo a fazer o EAD da rede de universidades para a “sua carreira decolar”. O ônibus chega e o ainda assustado rapaz sobe os degraus, olha para trás e vê a cantora dar uma última e malandra piscadinha.
E outro vídeo, com outro apalermado loser que acorda assustado com o alarme do rádio-relógio, olha para o espelho e toma um susto: ao invés do seu reflexo, vê a indefectível Ivete Sangalo com a mesma mensagem.
Bem diferente dos antigos vídeos publicitários da EAD Laureate com fábulas edificantes sobre jovens com sonhos que se realizam com a determinação ( embalados com os infalíveis temas musicais ao piano), agora é curto e grosso: você está no ponto de ônibus ou estressado com o alarme do rádio relógio, com olho arregalado e assustado com eventos paranormais. Por isso, você é um loser que precisa subir na vida.
Também é emblemático uma estrela do entretenimento, Ivete Sangalo, ser a garota-propaganda de uma rede de universidades. Sangalo virou uma espécie de equivalente geral da publicidade – já vendeu de tudo, de cosméticos e remédios a carros e marcas de cerveja... e agora educação.
Além de uma questão qualitativa (o entretenimento promovendo a educação), a urgência da mensagem publicitária não está na qualidade do “serviço” educacional. Mas no desespero de você estar no fundo do poço - no ponto de ônibus ou estressado pelo alarme do rádio-relógio.
2. Para Luciano Huck e Rodrigo Faro dar aulas é “bico”
E por falar em entretenimento, Luciano Huck (outro equivalente geral publicitário) e Rodrigo Faro (aspirante a equivalente geral) exortam os jovens a fazer uma segunda graduação de Formação Pedagógica para a atividade de professor ajudar a “aumentar sua renda”.
A reação nas redes sociais em relação às peças publicitárias foi negativa – sugere menosprezo à profissão de professor ao reduzi-la a um bico para aumentar a renda do mês. Tanto a Anhanguera como a UNIPAR divulgaram pedidos de desculpas protocolares (aliás, idênticos) pela “mensagem equivocada” e reafirmando que a docência “é o caminho para o desenvolvimento social e econômico”.
Uma “mensagem equivocada” (ou ato falho?) que sincronicamente é cometida no momento da destruição da CLT, a proposta de uberização da educação (clique aqui para a notícia) e a perspectiva generalizada de trabalho intermitente, “pejotização” e terceirizações radicais.
Mais um exemplo da publicidade brasileira atual atravessando agressivamente os umbrais da sinceridade: no final, o ato falho da peça publicitária revela o projeto secreto de grupos como Kroton e da norte-americana Laureate Universities – a gestão educacional por planilhas na estrita filosofia da relação custo-benefício.
3. “Uberização” é questão de ter tempo
E por falar em uberização, nada mais explícito do que as peças publicitárias do Uber – afinal, o modelo universal das futuras relações trabalhistas para todas as profissões: precarização, trabalho desregulamentado, salários miseráveis e patrões invisíveis escondidos pelas plataformas tecnológicas e transações econômicas misteriosas na sombra do espaço digital.
“Dirijo para me dedicar a música”, diz um jovem segurando um violão; “Dirijo para cuidar da minha família”, afirma uma sorridente mulher madura. São algumas peças publicitárias colocadas em pontos de ônibus (claro, é ali que os “losers” refletem sobre sua própria miséria, como a Laureate nos ensina) para eufemisticamente fazer o elogio dos bicos profissionais.
Mas que atmosfera respira essa sinceridade bruta das atuais peças publicitárias? Certamente a do sentimento de terra arrasada, o mesmo sentimento que fez milhões de brasileiros correrem para sacar contas inativas do FGTS.
O pensamento da sobrevivência no curto prazo, de viver um dia de cada vez sem pensar no amanhã. Precarizado e sem garantias sociais, o futuro será similar com o que ocorre em países como Japão e Coréia do Sul: idosos morrendo sozinhos pelo empobrecimento e desigualdade por simplesmente terem sido deixados para trás na luta darwinista social.
4. Para o Santander carteira de trabalho já era!
Mas talvez a sinceridade mais brutal esteja na peça publicitária do banco Santander – afinal, o sistema financeiro é a entidade com a lógica mais fria e agressiva, sob a sombra da tecnologia digital.
Criado pela agência Talent Marcel, o comercial promove a maquininha de cartões (a “vermelhinha”) da Getnet, empresa de tecnologia de meios de pagamento do grupo Santander - veja o vídeo abaixo.
Nas primeiras imagens, uma surrada carteira de trabalho sendo jogada no fundo de uma gaveta. Por que? “Pode ser pela vocação, falta de um empurrãozinho, a crise, uma puxada de tapete... mas o fato é que você virou EMPREENDEDOR!”, e a gaveta é fechada como se ali o passado fosse encerrado e esquecido.
O eufemismo é explícito: desempregados viraram “empreendedores”. Solução? A vermelhinha para fechar mais negócios com cartões. E decreta de uma forma sinistra sob uma narração com um tom entre o sarcasmo e agressividade: “não importa o que te trouxe até aqui... essa é a sua nova carteira de trabalho!”.
São exemplos de uma tendência publicitária atual sem retórica, com alguns eufemismos, mas direta, agressiva, como fosse a nova pedagogia para as massas em tempos ainda mais difíceis que se avizinham. Uma publicidade que parece ter perdido a vergonha ou pudores. Não tem mais tons pastéis ou “Oh Happy days!” para dourar a pílula. Agora vai a seco!
Definitivamente, é o zeitgeist contemporâneo no qual, por exemplo, nazifascistas perderam a vergonha e dão às caras de forma franca nas ruas e redes sociais. E até elegem presidentes...
BLACK MIRROR, TOTAL!
ResponderExcluirBELA ANÁLISE.