sexta-feira, março 03, 2017

"publicidade para inglês ver" *

Eis a prova definitiva de que a indústria da publicidade é a pior


(Screeshot: 'Mad Men' / AMC)

Um ex-publicitário conta por que ele não imaginava que a profissão pudesse ser tão escrota quanto é.

Imagina que você está tentando arrumar um trampo numa das principais agências de publicidade da indústria. Esse é o seu sonho, tudo que você sempre quis: um emprego criativo, claro, mas nas circunstâncias certas uma chance de mudar o mundo, de usar muito jeans e blazer, e estar a algumas promoções de um salário de seis dígitos. Classe criativa, sim, mas sem a parte da pobreza. E é assim que você chega lá: passando por três rodadas seletivas, várias entrevistas, testes e apresentações. E agora, você conseguiu um belo bufê de benefícios e clientes mundialmente conhecidos. Mas não apenas isso: te disseram que a empresa é amistosa, encoraja proatividade e é ranqueada como uma das melhores do Reino Unido [você pode substituir por Brasil aqui também] em satisfação dos funcionários.

"Esse era eu, um ano atrás: olhos brilhantes, cabelo lavado, maravilhado com o fato de que tinha uma geladeira de Coca Zero grátis no escritório. "

Infelizmente, todo mundo é babaca, se comporta como babaca e essa é uma indústria babaca construída sobre uma forte fundação de babaquice.

Aí você vê o problema. Esse era eu, um ano atrás: olhos brilhantes, cabelo lavado, maravilhado com o fato de que tinha uma geladeira de Coca Zero grátis no escritório. Em vez disso, fui jogado num mundo que vai além da paródia: cabeças vazias, drogas, roubo de ideias resvalando na fraude e nem um grama de bom senso para policiar tudo isso. Claro, eu esperava que a indústria tivesse suas merdas — a indústria é basicamente merda monetizada — mas, sabe, não tanta merda assim.

 Bom, aqui vai o que aprendi:

SE SOA BEM, ENTÃO TEM QUE SER BOM

Ideias são o alicerce da indústria da publicidade, uma indústria que entende que ideias são etéreas, difíceis de forçar, meio sem forma, necessitam de pensamento livre e do espaço e tempo certos, precisam de cuidado e poda, como orquídeas. 

Infelizmente, a indústria é absolutamente desprovida de ideias, então nada disso importa.

Começa com coisas pequenas. Testemunhei um dos nossos estrategistas sênior fazendo anotações num guardanapo, apesar de ter trazido um notebook com ele. A empresa inteira recebia e-mails inspiradores com citações do famoso boxeador Mohamed Alli. Tivemos apresentações comparando "conteúdo viral" de marcas com doenças virais, com pessoas sendo "infectadas" pela "epidemia" do nosso conteúdo (e não era uma piada com aquele episódio de It's Always Sunny in Philadelphia).

Comecei a frequentar reuniões de brainstorm — que, claro, são cheias de ideias de merda por natureza — e minhas esperanças não eram muito altas, considerando o que eu tinha visto antes. Eu esperava duas, talvez três boas ideias por hora. Quatro, num dia bom.
Mas dali não saiu nenhuma ideia. Zero. No lugar delas vieram... bom, seja lá o que é isso:

"O underground, por natureza, é muito escondido."

"Se nosso anúncio não é autêntico, ele parece falso."


"Através de promoção sinergética, podemos aumentar a conscientização."

O que não seria ruim se algumas dessas charadas invertidas depois não se tornassem a base para campanhas publicitárias caríssimas.

GUARDE SEUS PENSAMENTOS COMPLEXOS PRA VOCÊ

Na primeira semana, trombei de cara com um dos valores que a agência tinha identificado e estabelecido: estratégias complexas deviam ser expressadas apenas na forma de slides. Quanto mais imagens melhor, e
- Não.
- Mais.
- Que.
- Cinco.
- Parágrafos.
Então, quando cometi o erro de escrever uma análise detalhada de um cliente num documento de Word, meu gerente disse que eu tinha que "visualizar" minha pesquisa. Me disseram que a empresa gostava de usar apenas ferramentas sofisticadas, como — e essa é uma citação direita — "o PowerPoint".

SE VOCÊ MUDA O NOME DA MARCA, NÃO É PLÁGIO

Outra coisa comum nas sessões de brainstorm: a equipe sênior nos encorajava a tirar inspiração de ideias de outras marcas. Devíamos nos "inspirar" assistindo uma propaganda feita por outra agência, pegar os temas-chave dessa propaganda e analisar palavra por palavra para mudar isso para algo relevante para a marca com a qual estávamos trabalhando. Isso acontecia em quase todo brainstorm.
Por exemplo, estávamos trabalhando com uma marca popular de biscoito que estava tentando fazer o rebranding de um de seus produtos mais conhecido, mas geralmente desprezado (pense em Marmite, mas com biscoito) (na verdade: essa ideia é incrível?). Para chegar a uma propaganda agradável, os líderes criativos da agência juntaram todo mundo numa sala para assistir uma única propaganda de Oreo, de novo e de novo, e de novo, depois mais uma vez, e outra, até que o produto final parece algo que passamos o comercial pelo thesaurus.com.

"A barreira intelectual para entrar [na indústria da publicidade] é excepcionalmente baixa."


Outra vez estávamos trabalhando para uma empresa de carros e tiramos toda nossa "inspiração" da campanha de 2014 da Mercedes-Benz "Construa Seu Próprio Carro no Instagram". Passamos uma reunião inteira seguindo todas as rotas possíveis de combinação de carro, e aplicando isso diretamente à marca que estávamos competindo para ganhar a campanha. Aliás, nossa empresa pegou essa conta.

NÃO INTERESSA SUA ORIGEM, IDADE OU CAPACIDADE, VOCÊ TAMBÉM PODE SER UM PUBLICITÁRIO

Mesmo com alguns métodos criativos menos que rigorosos, a agência podia facilmente ter mentes analíticas inteligentes na forma de diretores de clientes, incumbidos não apenas de gerenciar as contas e a criatividade, mas também o orçamento e os dados. Mas minhas interações com diretores de clientes não me deram muita esperança. Uma vez tive uma longa conversa — e acho que ele não ainda saiu satisfeito — explicando para um deles que um aumento de 1% nas vendas do ano era um aumento de 3% para os anos anteriores. Esses mesmos diretores contribuíam regularmente nos brainstorms e se agarravam aos dados, sem edição ou discussão, para fazer uma campanha multimilionária. A lição é a seguinte: com arrogância e lábia suficiente, qualquer um pode ser publicitário. A barreira intelectual para entrar é excepcionalmente baixa.

SE NINGUÉM PODE PROVAR QUE VOCÊ ESTÁ ERRADO, NÃO É MENTIRA: OU "A TAL DA CONVERSA FIADA"

Meu tempo na agência também contou com introduções regulares a cada departamento, nos quais os chefes comentavam no que seu departamento contribuía em cada conta. Apesar de cada seção oferecer suas próprias habilidades e forças, uma coisa era mencionada em todos os departamentos:

"Ah, não, a gente não massageia os números das nossas taxas de sucesso — nós inventamos mesmo."

Um departamento tinha muito orgulho de uma ferramenta que tinha desenvolvido, baseada num algoritmo criado pela agência, que podia melhorar o target em propagandas televisivas. O único problema da ferramenta? Ela não existia. Mas a equipe sênior me informou que os clientes adoravam ver a interface fotoshopada da ferramenta e os resultados inacreditáveis que a agência tinha alcançado com ela, e que isso realmente ajudava a fechar negócios e ganhar contas, então... tinha... alguma... necessidade... de criar uma ferramenta real?

VOCÊ SE DÁ BEM SE FINGIR QUE AINDA ESTÁ NOS ANOS 60

Quando me contrataram, uma das coisas que eu estava mais empolgado era a cultura da empresa. A agência ganhava prêmios todo ano graças a taxa de satisfação dos funcionários e era conhecida por oferecer os melhores benefícios do Reino Unido, fora os prêmios pelas propagandas. E eu queria alguns daqueles benefícios.

"Infelizmente, não valia a pena aguentar a realidade cotidiana da agência pelo bufê de café da manhã."

Infelizmente, não valia a pena aguentar a realidade cotidiana da agência pelo bufê de café da manhã. O que era discutido no trabalho podia ser categorizado em três tópicos: as últimas fofocas do escritório (sexo; cocaína), com que donos de mídia eles tinham cheirado recentemente no almoço (cocaína; sexo), e relatos gráficos das últimas escapadas sexuais (um diagrama de Venn perfeito de cocaína e sexo). Várias empresas acrescentavam "brincadeiras" nas apresentações na forma de fotos de membros da equipe sênior posando com strippers num clube. Meus colegas passavam horas do expediente mostrando tuítes de colegas pedindo a mulheres famosas para "sentar no meu pau". E quando ficavam entediados disso, começavam um debate acalorado sobre que nacionalidades eram "melhores" para contratar babás e empregadas. Não lembro do episódio em que Don Draper gritava "Foda-se! Italianos CAGAM nos poloneses!" Mas era bem isso.

DESDE QUE VOCÊ CONSIGA SE SAFAR, FAÇA

A publicidade — como você pode imaginar pelo número de campanhas que causaram polêmica nos últimos anos, das propagandas de "corpo de praia" até o Superbowl — é uma terra operando muito longe dos confinamentos do politicamente correto. Mais ainda no meio de novembro, quando os convites para a festa de Natal da firma começaram a chegar.
O tema "Benefícios Britânicos" era promovido por uma filipeta coberta de imagens de bom gosto de Vicky Pollard encorajando a equipe a participar, com a instrução: "NÃO PENSE SIMPLESMENTE EM CHAV [um jeito pejorativo de falar em estereótipo] – ESSA É UMA OPORTUNIDADE DE PENSAR FORA DA CAIXA!!"
Quando sugeri que talvez não fosse uma boa ideia — mesmo que de uma perspectiva profissional, já que alguns dos nossos clientes eram organizações sem fins lucrativos com contratos no governo — o escárnio foi histérico. Uma discussão que começou com "como uma coisa dessas vai sair daqui?" naturalmente se metamorfoseou numa câmara de eco de "insanidade politicamente correta", e finalmente terminou com a questão em aberto: "Black face é tão ruim assim?" Sim. Assim como ir para uma festa de Natal usando Burberry ironicamente e abrir garrafas de champanhe com anéis masculinos.
Sendo assim, eu recomendaria a indústria da publicidade para todo mundo? Por um lado: não. Por outro lado: não, ainda não recomendaria. Quando você mergulha nela de cabeça e tem que lidar com essas pessoas todo dia, e bate cabeça repetidamente contra um muro desolado de criatividade, e faz algumas propagandas (um grupo inclusivo de crianças, abrindo os olhos em câmera lenta; uma versão de elevador de uma música pop; um narrador de voz grossa; um Honda Civic indo em direção ao pôr do sol) de novo e de novo, você percebe: por isso tem tanto pó e putaria na indústria. É o único jeito de lidar. Bom, agora trabalho com comunicação. É muito melhor.



*matéria originalmente publicada na vice na VICE UK .
Tradução: Marina Schnoor


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