Um dos mais respeitados nomes da publicidade brasileira, Júlio Ribeiro é dono da Talent, empresa que fundou há 26 anos e integra hoje o restrito grupo de agências de grande porte com capital exclusivamente nacional. Nesta entrevista ao Valor, o publicitário, considerado um mestre por seus pares, explica por que nunca trabalhou com contas governamentais e diz que o escândalo do mensalão manchou a imagem do setor publicitário. Marisa Cauduro/Valor
Júlio Ribeiro: atenção à nova configuração das sociedades, à ascensão da classe C e, em especial, ao poder de decisão de compra, cada vez mais, nas mãos das mulheres
Numa aguçada análise da sociedade contemporânea, Ribeiro fala sobre o poder crescente da mulher como chefe de família e consumidora e de como os cidadãos invisíveis - o motorista Eriberto que derrubou Collor ou o caseiro Francenildo que tirou Palocci do Ministério da Fazenda - estão elegendo seus representantes. Ele fala também da desilusão dos brasileiros com as instituições e o poder público. Júlio Ribeiro prevê a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Acho que nem a mulher do (ex-governador Geraldo) Alckmin vai votar nele".
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: A Talent nunca teve governos ou empresas estatais em seu portfólio de clientes. Por que?
Júlio Ribeiro: A finalidade do poder público é prover educação, segurança e saúde e os governos tiram dessas áreas centenas de milhões de dólares todos os anos para promover a si mesmos. Eu acho isso anti-social. Por outro lado, os governos são entidades políticas e a escolha das agências tem que ser política. Tem ocasiões em que você tem que trabalhar nas ante-salas da corte, tem que contribuir para coisas com as quais você não concorda: propina, corrupção. Essa promiscuidade não me atrai. Em 30 anos de profissão eu nunca tinha visto o que aconteceu no ano passado.
Valor: O escândalo é novo. Não a prática.
Júlio Ribeiro: A prática política é leniente, permissiva, complacente por definição. Qualquer político que você pensar, tem que compor. Agora, corrupção instituída não tinha. Eu me orgulhava e falei, em várias palestras, que nós estávamos num dos campos profissionais mais éticos. Porque, mesmo lidando com US$ 8 bilhões por ano, a gente não freqüentava as manchetes dos jornais. Você não vê alguém recolher o dinheiro de uma Volkswagen e sumir com ele numa agência de publicidade.
Valor: Mas não havia corrupção na contratação das agências, por parte dos órgãos públicos?
Julio Ribeiro: Olha, até onde é visível não. Eu tenho amigos publicitários que ganharam concorrências honestamente. Agora, o que se faz entre quatro paredes a gente não fica sabendo. Você pode ter o hábito de usar lingerie entre quatro paredes. Se a polícia pega você usando lingerie, aí vira um escândalo.
Valor: O fato da publicidade ter usado lingerie em público agora, fez muito mal ao setor?
Júlio Ribeiro: Claro que fez. Fez muito mal. Mas não acho que houve um escândalo na publicidade. O Marcos Valério nunca foi publicitário. Ele sempre foi lobista.
Valor: O Duda Mendonça decepcionou o senhor?
Júlio Ribeiro: Me decepcionou porque ele é um profissional competente. Fiquei triste por ele.
Valor: As recentes mudanças na legislação eleitoral melhoram o processo?
Júlio Ribeiro: O grande problema político do Brasil hoje são os erros estruturais do modelo político. A representação dos estados, os colégios eleitorais. O eleitor do Acre que vale por 20 eleitores paulistas. A forma como o colégio eleitoral é formado, sem voto distrital, propicia a falta de representação e a entrada de muitos aventureiros. A legislação eleitoral é leniente e a Justiça no Brasil é uma caso triste de incompetência secular, e e até onde eu vejo, não faz nada para acabar. O que está acontecendo hoje no Brasil? Todas as coisas que estão no Hino Nacional, no Hino da Bandeira, no Hino da Independência estão perdendo o sentido, porque as pessoas não confiam mais no Poder Executivo. Depois tem o Legislativo com esse procedimento de absolvições, de conivência com sanguessugas. E terceiro, o Poder Judiciário que não pune ninguém. Os jornais informam que uma pessoa acima de determinada renda não cumpre mais de cinco anos de cadeia neste país. O resultado disso é uma desilusão em relação aos ideais da pátria. Você pega, como exemplo os Estados Unidos, que é a potência imperialista do milênio, eles são um país místico: eles acreditam nas instituições, se emocionam ouvindo o hino nacional. Você vê, os executivos da Enron, foram condenados a penas altíssimas. Qual empresário brasileiro foi preso, apesar de desvios colossais? Nenhum. A única pessoa presa, com alguma importância aqui no Brasil é o juiz Nicolau, e em prisão domiciliar.
Valor: Essa desilusão que o senhor descreve não está restrita a uma parcela da população, a elite? . Porque como é explica a popularidade do Lula?
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"Você não vê alguém recolher o dinheiro de uma Volkswagen e sumir com ele numa agência de publicidade"
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Júlio Ribeiro: Qualquer brasileiro consciente está desiludido com os três poderes constituídos. Qualquer coisa que se vá fazer no Judiciário leva um século para ser solucionada. Estamos tocando um projeto que, entre outras coisas, mostra que no Brasil morrem 15 crianças por hora em conseqüência da falta de saneamento. A Constituição de 1988 estabeleceu que os municípios cuidariam da água e os estados cuidariam do esgoto. O Ministério das Cidades fez uma lei que permite às prefeituras abrir consórcios para cuidar da água. Essa regulamentação está há 20 anos no Congresso e o Supremo Tribunal Federal está há oito anos para dar um parecer sobre um município do Rio que privatizou o serviço de água e foi acionado pelo Estado. Oito anos - e as crianças continuam morrendo.
Valor: Com essa desesperança e desilusão com o poder público, como se explica o Lula continuar bem colocado nas pesquisas de opinião para as próximas eleições?
Júlio Ribeiro: Estive no mês passado num Congresso, em Miami, que levantou o tema migração. Ninguém percebe, mas o homem ficou nômade outra vez. No passado, as pessoas migravam porque acabava o pasto e levavam o boi para pastar em outro lugar. Hoje é a mesma coisa. Não tem desemprego no México porque um terço dos trabalhadores migrou para os EUA. Os italianos morrem de medo dos africanos que atravessam para lá. Nos Estados Unidos agora eles pegam navios cheios de chineses. Então, o que acontece com essa migração que pode ser a nível internacional ou em nível local? Desenha-se um modelo em que, de alguma forma, os pobres começam a configurar a sociedade. Em Miami não se pode mais ignorar os hispânicos, que são maioria. Então, a configuração da sociedade começa a ser hispânica - e esse cara elege. Quando você pega o Brasil dos anos 70, a elite governava e era de se esperar que os mais preparados governassem. Você pega o Brasil de hoje ele é predominantemente de classe C.
Valor: Os eleitores são predominantemente da classe C, mas os eleitos não são.
Júlio Ribeiro: Por enquanto. Por que isso está acontecendo na Bolívia, na Venezuela, pode acontecer no Peru. Se essas pessoas são maioria eleitoral, elas começam a ter um comportamento próprio, eles dão a tônica de como serão as eleições no futuro. Eles cansaram do modelo em que as elites governavam para elas mesmas. O que está acontecendo na Bolívia? A Bolívia sempre teve gás, só que quem governava eram os bacharéis. No fim do século XIV começo do século XX, uma mineradora americana comprou uma área colossal no Peru e fez uma cerca que dividiu os municípios. A cerca impedia que os índios se movimentassem. A companhia pôs guardas e cachorros para vigiar a área e os índios se revoltaram. Começaram uma luta que durou 20 anos e na qual morreram dezenas de milhares de pessoas. O livro "Garabombo, o Invisível", de Manuel Scorza [Editora Civilização Brasileira] conta a história de um personagem, que se chama Garabombo. Um dia, ele foi num cartório tirar uma certidão e passou quatro dias lá sem que ninguém o visse. Ele chegou à conclusão de que era invisível. Quando veio a guerra, empregaram o Garabombo como espião porque era invisível. Ele ia do lado inimigo e ouvia todas as conversas, todas as estratégias porque as pessoas simplesmente não o viam. Esse cara existiu. O autor, um jornalista, o encontrou. Ele estava há 40 anos preso sem julgamento. Agora essa visão de que ele era invisível é a visão que se tem do caseiro que derrubou o Palocci, o motorista que derrubou o Collor. São as pessoas que não existem. E essas pessoas que não existem no Brasil são maioria colossal, têm título de eleitor e não confiam em mais ninguém. É por isso que o Lula vai ganhar. Porque eles vão confiar em quem, no Alckmin? Eu acho nem a mulher do Alckmin vai votar nele. Esse movimento é porque o Brasil deixou de ser o país dos bacharéis. O povo brasileiro vai determinar como serão as coisas e é isso que vai determinar o amadurecimento político. Pode eleger o Lula, o Garotinho. Esse é o modelo que a gente vai ter que encarar.
Valor: O senhor acha que o progresso econômico, o aumento da renda, o acesso à escola levou essa massa de pessoas de mais baixa renda rapidamente para uma condição de ter voz e poder escolher mas que ainda faltam instituições que os representem?
Júlio Ribeiro: Não tem instituições. A gente está indignado porque eles não estão mais aceitando os valores da burguesia. É isso. Se o Serra não tivesse se candidatado ao governo do estado de São Paulo ia perder para o Lula. Porque eles se desiludiram com as instituições. Você vê essa caça à polícia que tivemos em São Paulo e o que foi que eles fizeram? Nada! As pessoas andam nas ruas e são assassinadas. Você acha que eles vão confiar nesses caras? A gente está indignado por que eles não querem mais aceitar os valores burgueses. A mudança social vem por crença. O Antonio Conselheiro derrotou o Exército brasileiro duas vezes por que? Porque o pessoal acreditava. Mas o que acontece: o pessoal elege um representante deles para ir para o Congresso, como uma Benedita da Silva, que era negra, mulher e favelada, e a primeira coisa que ela fez foi um monte de de mutreta. Hoje ela mora numa cobertura, viaja para a Europa e não representa mais os caras. Eles começaram a votar em quem o pastor da igreja evangélica indica. Por isso Lula vai ser reeleito.
Valor: O senhor não vê o populismo com preconceito? A elite usa essa palavra com uma conotação pejorativa, 'o populismo tomando conta da América Latina'?
Júlio Ribeiro: Eles são maioria e têm o direito de eleger quem eles quiserem. Eu posso não gostar, mas eles podem eleger quem eles quiserem, para isso é que têm o voto. Eu acho que só vai piorar. Inclusive a desilusão, essa descrença que eles têm. Veja, nos anos 60 e 70 a maior parte da população do mundo era comunista - somando a Rússia, a China a Europa Central e a Ásia. E o que aconteceu com o comunismo? Ele se desfez sozinho porque acabou a crença no comunismo. Eu acho que vamos ter um surto de populismo na América Latina que vai ter de ser engolido, digerido e excretado.
Valor: Essa população também passou a ter acesso a uma série de bens de consumo e serviços. O senhor acha que as agências de publicidade estão preparadas para fazer a comunicação para esses novos consumidores?
Júlio Ribeiro: Hoje, a situação financeira, a falta de dinheiro ou o acesso a bens e serviços por parte dos mais pobres é só um lado da vida das pessoas. Mas há outros aspectos e nós estamos estudado novos modelos de organização familiar. Por exemplo, as mulheres de alta renda estão dominando as famílias. Deus ainda é um substantivo masculino no dicionário, mas o universo está usando laço de fita e é cor-de-rosa. Quer dizer que o mundo ainda tem uma visão masculina, mas o poder de consumo é das mulheres. Uma pesquisa recente mostra que 65% de quem bebe vinho é do sexo feminino, 33% de toda a cerveja bebida no Brasil é consumida por mulheres. Um terço dos automóveis da Mercedes Benz são vendidos para mulheres. Há um novo modelo de arranjo social, familiar e econômico que modifica o comportamento e os gostos das pessoas que independe da pobreza. Há um outro fator de adaptação que é a presença das mulheres.
Valor: Mudaram os hábitos e a configuração da sociedade. A comunicação está acompanhando essas mudanças, está preparada para lidar com elas ?
Júlio Ribeiro: Vender hoje é suprir carências. Na medida em que a mamãe não almoça mais em casa, ela perde valores que tinha quando estava no lar. O afeto familiar, o hábito de visitar a mãe. Outro dia eu fiz uma palestra para 120 executivas e aparecia isso: 'não sei se é vantagem eu viajar às cinco horas da manhã para Manaus e no dia seguinte ter que fazer um relatório e no outro dia ter que trabalhar até tarde. Não sei se eu gosto desse modelo de vida'. A tensão gera perda de valores que o emprego não dá. Não há espaço para a afetividade no ambiente de trabalho. E as perdas afetivas não se repõem sozinhas. Você tem de compensa-las. O consumo tem feito esse papel. Consome-se muito mais hoje para suprir carências afetivas.
Valor: E a propaganda está conseguindo transmitir essa sensação de suprir carências?
Júlio Ribeiro: Quer um exemplo: a Natura tem metade das consultoras da Avon e vende o dobro. Por que? Porque ela se importa com as consumidoras. A marca Dove usar mulher gorda de calcinha na propaganda é uma manifestação de amor. Na Inglaterra há um estudo que mostra que mesmo na compra de automóveis as mulheres querem saber qual é a atitude do fabricante em relação ao público feminino. Então isso já está virando um ponto positivo, a atitude da empresa com o universo feminino. Por isso que o Itaú dá desconto para seguro de automóveis de mulheres. O que está acontecendo hoje na comunicação é que você tem uma nova realidade. Tem uma pesquisa da BusinessWeek que mostra que 30% das mulheres ganham mais que os maridos.
Valor: O senhor está mais atento ao efeito das mulheres do que no avanço da classe C?
Júlio Ribeiro: Não. Mas na classe C tem mulher também. Estou atento a vários fatores. Por exemplo, tem um que é mais apavorante ainda. As mulheres vão viver mais de 90 anos - os homens uns 80. Alguém está preparado para viver 90 anos? Tem caixa para isso? Como ficam afeto, relacionamentos, amigos? Hoje, mulheres de 50 anos são competitivas na área da afetividade. É um fator novo na psicologia da mulher. Aos 50 anos, estão ótimas. Antigamente, as mulheres aos 40 anos entravam na menopausa, colocavam uma roupa preta e iam conversar com a vizinha porque o marido tinha morrido aos 60 de infarto. Hoje, eles com 60 anos e um pouco de trato e uma pastilha de Viagra estão no mundo. Como é que vai trabalhar depois dos 60 anos? E vão viver até os 80! Tem outro fator que é sobre o universo das aspirações. As mulheres executivas dizem que não têm problema de deixar as crianças em casa: compensam no fim de semana. Mas é falso. É um componente afetivo importante. Os homens, por outro lado, estão perdendo importância dentro das famílias, nas empresas, no mundo em geral. É impressionante a perda de espaço dos homens. Mas há ainda uma outra questão nas classes C, D e E que é a da sobrevivência. Antigamente isso era um problema exclusivamente do homem hoje é uma preocupação de toda a família. Hoje, o sentido da preservação de si, da família, tem um peso enorme para todos. Se o Lula dá cesta básica, aumentou o emprego, aumentou a renda, esses caras vão votar nele. Se a bolsa caiu ou não, não importa. Eles querem salário, querem renda, querem emprego, querem sobreviver. Em países como Paraguai e Bolívia, o fenômeno é igual. Os caras não acreditam mais nas elites. As elites se desmoralizaram. E eu acho teremos um surto populista na América Latina. Não sei quanto tempo vai durar. Então o Lula será imbatível nesse período.
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