sábado, janeiro 14, 2006

para quem ama os que amam viver perigosamente

• Aos 22 anos, trocou a carreira de advogado pelo palco
• Várias vezes premiado: 5 Molière e 2 Troféu Imprensa
• Tem duas filhas, Lígia, 46 anos (com Célia Helena), que lhe deu as netas Vitória, 20, e Clara, sete; e Maria, 20 (com Tânia Caldas)
• Já participou de 66 peças teatrais, 20 novelas, seis minisséries, 28 filmes

Livre do tratamento de um câncer e de volta ao trabalho, Raul Cortez exibe sua franqueza cortante: Agora sou um perigo.

Afastado das telas e do palco há cerca de um ano, Raul Cortez, 74 anos, quer movimento. Livre do duro tratamento que enfrentou por causa de um câncer no intestino, aos 52 anos de carreira ele começa a voltar ao trabalho. A alta do tratamento químico aconteceu em 20 de setembro e no dia 3 de outubro estava no Exterior. E pensa em outro passeio. Quer ir ao deserto do Atacama, no Chile. Bem disposto, colocou sua marca de ator premiado em um filme “de gente jovem” no Sul; está dublando um personagem num desenho infantil; e fará uma pequena participação na minissérie JK , da Rede Globo. Ele ainda mora na região de Santo Amaro, zona sul de São Paulo, onde nasceu. Pouco a pouco, porém, está se mudando para o sítio no interior paulista para se dedicar a outra paixão, os livros. Da batalha que travou no último ano, ficou uma franqueza mais crua. “Sou um perigo, falo o que tenho que falar.”

– Como foi enfrentar o câncer?
Raul Cortez – Foi terrível. A gente não tem muita consciência durante a doença. Estava em tratamento, tinha que me recuperar, me curar, pensar positivo. Sempre fui forte. Pior do que o tratamento, que é duro, é a depressão. Ela te acompanha a cada instante. Tem de combater sempre. Foi o meu objetivo. Só depois que recebi alta é que pude ter a dimensão de tudo o que eu tinha sofrido. Foram 15 horas de operação. Houve momentos que estive entre a vida e a morte. Você sai muito abalado e muito enriquecido também.

– O sr. mudou depois da doença?
Cortez – Mudei bastante. Não tenho a dimensão ainda de tudo. Fui liberado do tratamento químico no dia 20 de setembro e no dia 3 de outubro já estava embarcando para o Exterior. Fui para Nova York e depois para a Europa. Sozinho. Tinha que fazer isso. Tinha que me afastar do assunto, mas só consegui mesmo em Roma. Em Portugal acabei na capa de uma revista, falando da doença. Queria me livrar dessa coisa de as pessoas perguntarem se eu estava bem e não acreditarem na resposta. Eu dizia que estava bem, mas as pessoas não ouviam porque o tabu dessa doença é tão grande que quem teve já está condenado. Elas não percebem que já há medicamentos, que não é mais fatal. Acho que imaginam que é impossível estar bem. E isso me irrita profundamente. Meus órgãos estão se dando bem. Estão procurando seu espaço. Foi tudo mexido. Esse é um assunto que me desagrada profundamente. Já virei a página. Estou recuperando minha energia, minha saúde. Mudei na franqueza. Hoje, sou um perigo, de tanta franqueza. Falo o que tem que falar.

– Está mais ranzinza ou mais complacente com a vida?
Cortez – Estou mais complacente com as pessoas. Com a vida, é impossível. Graças a Deus, ainda sofro de indignação. Mais indignado do que estou agora, com todos esses escândalos, impossível.

– O sr. sempre foi politizado?
Cortez – Sempre fiz teatro político, fui a vários palanques, antes das Diretas. O primeiro comício do Tancredo Neves foi numa praça no Rio de Janeiro. Eu estava lá e ele me chamou para o palanque. Na campanha contra o Collor, eu e alguns colegas fomos os primeiros a sair com a faixa “Fora Collor”. Nunca fui omisso.

– O sr. não gosta do presidente Lula?
Cortez – Não gosto do PT. Quanto ao presidente Lula, é preciso respeitar sua história. Agora, essa indefinição, sabia, não sabia... De qualquer maneira, não é um momento feliz da vida dele. Nunca votei no PT. Votei no (Eduardo) Suplicy. Nunca acreditei no PT. Há sempre uma justificativa do fracasso, usando a esquerda. Não foi uma decepção a ação desse partido. Eu esperava isso. As pessoas têm que estar preparadas para o poder. Se você não tem estrutura, honestidade intrínseca, caráter, o poder corrompe mesmo. “Todo mundo faz” não é justificativa para o erro. Esse dinheiro saiu do nosso bolso. Nenhum partido fez isso antes. Eles acham que o fim justifica os meios. Isso me deixa indignado. Tenho 74 anos, nunca recebi porra nenhuma de governo nenhum. Sempre fiz do limão uma limonada. Cultuei a esperança do Brasil do futuro e nunca vi o futuro maravilhoso chegar. A gente não deu certo. Temos um país maravilhoso, mas geneticamente ruim.

– Mas não produzimos coisas boas?
Cortez – Também produzimos muita coisa ruim. Abra o jornal, não há vontade política, há muito individualismo, mediocridade. Antes do golpe militar, tínhamos um movimento intelectual fantástico, música, teatro, cinema. Hoje é axé não sei de onde, cantoras que gritam mais do que cantam, uma bundaiada. É preciso ser esperto para se salvar, é preciso lutar. Se depender da mídia, o bom fica de fora.

"Tem havido muita procura por cursos de teatro, que na verdade são vistos como um trampolim para a televisão. O que as pessoas querem é virar celebridade, fazer baile de debutante"

– O sr. ainda se considera tímido?
Cortez – Ainda sou. A gente aprende a disfarçar. No palco, a gente encarna outra pessoa. Principalmente no teatro. A comunicação entre palco e platéia é extraordinária. Há generosidade dos dois lados. A timidez, de certa maneira, perdi durante essa doença. Quando você tem contato com algo tão terrível, percebe que nada nem ninguém tem tanto valor assim. Você não é tão importante. A vergonha de se expor se perde. Você já foi tão exposto, tão fragilizado. Importante é o que você é, o seu brilho, a sua energia, que é única, e que você não pode deixar escondida.

– O que o sr. fará no longa-metragem
animado Garoto cósmico ?
Cortez – Não é uma mistura de desenho com atores. Estou dublando um personagem. É um universo bonito. No Garoto cósmico , dublo o Giramundos, um senhor que toma conta de vários planetas. Ele salva as crianças de um planeta onde tem hora para tudo, não há liberdade para nada. Ele as leva para conhecer outros planetas e a liberdade.Não tem influência dos desenhos americanos. É do Alê Abreu. A dublagem é meio torta, pigarreio no meio das falas. É uma produção para crianças de até dez anos que provoca aquele sorriso gostoso no adulto.

– Quais são seus outros projetos?
Cortez – Parei tudo na minha vida, tenho que me restabelecer, orgânica e financeiramente. Há muitas coisas que quero fazer. Tem a Casa de Teatro da Lígia (sua filha) que estou empenhado em duplicar. Lá, ela ensina teatro a crianças e adolescentes. Devo participar de uma novela das sete da Globo. Fiz uma participação num filme em Florianópolis,de gente jovem. A roteirista, Paola Delben, tem 22 anos. O longa chama-se Identificado . Fala de genética. É meio político, meio científico. Ela é ótima. Me deu um livro, que escreveu aos 15 anos. É bom participar da biografia de alguém que está começando e tem talento.

– No Brasil é difícil popularizar o teatro?
Cortez – É só pedir para o governo diminuir os impostos. O preço é caro, mas nós pagamos 30% da bilheteria para o dono do teatro, 5% sobre o preço do ingresso para a prefeitura, há os porcentuais para autor, diretor, atores, encargos sociais e trabalhistas, e ainda a meia-entrada para estudantes e aposentados. Claro que tem gente que põe o preço lá em cima.

– O que poderia efetivamente ajudar?
Cortez – A importância que a mídia dá para algumas pessoas que não têm valor deveria ser dada ao teatro. Teatro tem que estar na escola. A cultura não pode existir sem a educação. Não pode existir cultura sem o básico: saúde e educação. Tem havido muita procura por cursos de teatro, que na verdade são vistos como um trampolim para a televisão. O que as pessoas querem é virar celebridade, dar autógrafo, fazer baile de debutante. Mas o teatro não é isso. Ser ator é uma necessidade imperiosa. É a mesma história do Rilke (Rainer Maria Rilke, 1875-1926). O poeta dizia: “Põe a cabeça no travesseiro e pergunta se você viveria sem escrever.” O ator não vive sem atuar.
Por Rita Moraes, para a Isto é, semana que passa

Nenhum comentário:

Postar um comentário