quarta-feira, dezembro 21, 2005

quarta ah portuguesa: sobre falar merda, o livro

"Um dos traços mais notáveis de nossa cultura é que se fale tanta bobagem. Todos sabem disso. Cada um contribui com sua parte, mas tendemos a não perceber essa situação. A maioria das pessoas confia muito em sua capacidade de reconhecer quando se está falando bobagem e de evitar se envolver. Assim, o fenômeno nunca despertou preocupações especiais nem induziu uma investigação sistemática. Por causa disso, não temos uma idéia clara do que é 'falar merda', da razão para que se fale tanta ou para que serve. "Escrito com muito humor, o livro que se aborda hoje, retrata o nosso tempo ao expor um ato que define com precisão a sociedade moderna."

Falação que consome o tempo

Numa carta de 4 de abril de 1654, o padre António Vieira faz esta advertência a D. João IV, rei de Portugal - 'Me manda V. M. diga meu parecer sobre a conveniência de haver neste estado ou dois capitães-mores ou um só governador. Eu, Senhor, razões políticas nunca as soube, e hoje as sei muito menos; mas por obedecer direi toscamente o que me parece. Digo que menos mal será um ladrão que dois; e que mais dificultoso serão de achar dois homens de bem que um'.

O trecho, de uma previdência e concisão admiráveis, torna ainda mais deprimentes pelo menos dois aspectos da atual crise política - os sinais de que a corrupção continua uma prática rotineira nos altos postos do Estado brasileiro, por um lado, e a retórica pobre e vazia dos que se dizem dedicados a combatê-la, por outro.

Quem acompanha as investigações sabe que o palavrório dos interrogadores pode ser mais enervante do que as negativas dos interrogados. Mas enquanto depoentes recorrem à Justiça para não serem obrigados a falar a verdade, ninguém precisa ir ao STF para garantir o direito de fazer discursos entediantes em vez de perguntas. Todos concordamos, afinal, que falar besteira cansa, mas não é nem de longe uma falta tão grave quanto mentir.

Best-seller nos Estados Unidos

Pois Harry G. Frankfurt discorda. Ele é o autor de Sobre falar merda , um ensaio que procura definir o significado preciso de um fenômeno tão disseminado (é uma 'ubiqüidade impublicável', nos dizeres do 'New York Times') quanto pouco estudado - 'bullshit', no original em inglês, ou o 'falar merda' na tradução. Filósofo e professor da Universidade de Princeton, Frankfurt escreveu o ensaio em 1985, mas só no início deste ano concordou em lançá-lo num volume único, embora o achasse muito curto para isso.

O livrinho foi um sucesso

Chegou ao primeiro lugar na lista de mais vendidos do 'New York Times' e há planos para traduzí-lo em mais de dez idiomas — o que demonstra a amplitude do fenômeno estudado - 'Um dos traços mais evidentes de nossa cultura é que se fale tanta merda. Todos sabem disso. Cada um de nós contribui com sua parte', diz o autor.

Frankfurt procura definir o 'falar merda' através de uma comparação com outras formas de desonestidade - a mentira, o blefe, a dissimulação. Sua conclusão é que ele não apenas é um fenômeno distinto de todos esses, como também é, de todos, o mais danoso à verdade, porque sua essência é uma 'falta de preocupação com a verdade', ou 'indiferença em relação ao modo como as coisas realmente são'.

Pelas definições de Frankfurt , um cônjuge infiel que diz ter ficado até mais tarde trabalhando no escritório é um mentiroso. Já um homem que discorre, num encontro, sobre a beleza dos pensamentos de Deepak Chopra está provavelmente falando besteira. O mentiroso quer enganar o outro sobre um fato (onde estava até agora), enquanto o falador de besteira quer enganar o outro a respeito de si mesmo e de suas intenções.

'O fato que o falador de merda oculta sobre si é que o valor de verdade de suas afirmações não tem um interesse fundamental para ele', escreve Frankfurt . O que interessa ao homem do encontro é convencer a mulher de que é uma pessoa sensível. O real mérito (ou falta de) da obra de Deepak Chopra é irrelevante, neste caso.

Por isso Frankfurt sente-se tão incomodado pelo ato de falar merda. Quem fala 'não rejeita a autoridade da verdade, como faz o mentiroso, e opõe-se a ela; simplesmente, não lhe dá a menor atenção. Em virtude disso, falar merda é um inimigo muito pior da verdade do que mentir'. Como ele próprio reconhece, seu livro é um novo capítulo numa velha briga - a dos filósofos contra formas de discurso que não tomam a verdade como valor fundamental.

Sobre falar merda é tanto um livro sobre o assunto anunciado no título quanto sobre a verdade (no momento, Frankfurt escreve um livro sobre a importância da verdade). O autor procura reafirmar a necessidade de um pensamento rigoroso, que busque conformidade com os fatos. Ele identifica como causas da difusão do falatório não apenas as exigências da vida pública, em que indivíduos são interpelados a manifestar-se sobre assuntos que não dominam, mas também a própria crítica pós-moderna à idéia de verdade.

Segundo ele, o ceticismo sobre a possibilidade de 'sabermos como as coisas na verdade são' faz com que o ideal de correção no pensamento seja substituído pelo ideal de sinceridade. 'É como se a pessoa percebesse que, uma vez que não faz sentido tentar ser fiel aos fatos, deve, em vez disso, esforçar-se para ser fiel a si mesma', escreve. Mas isso, argumenta, é um erro - 'Nossa natureza é enganosamente sem substância — muito menos estável que a natureza das outras coisas. E, já que o caso é esse, sinceridade nada mais é do que falar merda', diz.

O ridículo de quem afeta indignação e sinceridade

Frankfurt escreve com graça, mas alguns argumentos, como este, não são desenvolvidos com a extensão que se poderia desejar. É o que ocorre com o aspecto humorístico da 'falação de merda'. Frankfurt não deixa de reconhecer o ridículo de quem afeta indignação e sinceridade como estratégia de promoção pessoal. Mas, à maneira de Buster Keaton, prefere deixar que a comicidade da situação se manifeste sem que precise enunciá-la diretamente. Ele, afinal, está preocupado em demonstrar que talvez devêssemos ser menos tolerantes.

Miguel Bezzi Conde

sobre falar merda, harry frankfurt, no brasil publicado pela intrinseca. se não publicado em portugal, considerem-se discriminados por sua obra.

por via das dúvidas já me recomendei o livro. mantenham-no a cabeceira, publicitarios.

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